Não vivo no passado, o passado vive em mim. Essa lapidar máxima de Paulinho da Viola me levou a viajar pros carnavais de Santa Maria nos inícios dos anos 60s.
Acontecia da seguinte maneira.
A partir do começo da segunda quinze de janeiro, os saxofonistas Altamiro, Jaime Santana, Antonio Gusmão e Henrique, além de Seba no tamborim, carnaval chegando, ficavam de ouvidos colados no rádio escutando nas Globo, Tupi e Nacional as músicas que iriam trilhar sonoramente o período momesco naquele ano.
De ouvido, eles, no jargão musical, “tiravam” as músicas de maior apelo popular.
Na sequência, o Bar Santa Clara, de Dôca, convocava nós os foliões adolescentes pros ensaios carnavalescos um mês antes das folias.
Parêntese.
Dôca, o dono do bar, era um cara muito inteligente pra ganhar dinheiro mas intelectualmente uma negação, assim como tantos outros endinheirados, cujos respectivos QI são abaixo de zero.
Veio de Açudina, lugar onde candeeiro dá choque, urubu voa pra trás e galinha cisca pra frente, zona rural de Santa Maria.
Um dia um cara assinou um documento e mostrou pra ele; quando viu a assinatura, José Rodrigues Júnior, perguntou pro cara “você é parente do meu filho?, ele também tem Júnior no sobrenome”.
Outro chegou e perguntou “Dôca, tem mictório aí?”
Olhando pras prateleiras ele murmurava “mictório, mictório… tem não, em breve vai chegar no vapor”.
Retomando, lá íamos nós todas as noites ensaiar frevos, marchinhas…
Eram sessões que duravam das 8 às 10 da noite.
Tod@s de mãos dadas, se formava um círculo de uns trinta componentes, bailávamos à la vonté…, adrenalina pura.
Me lembro que quando “Máscara negra”, do genial Zé Ketti, foi lançada explodiu, foi um arraso.
Um balanço extasiante [Tanto riso/ oh quanta alegria…]. Ao ouvir “vou beijar-te agora/ não me leve a mal/ pois é carnaval”, tinha nego que aproveitava o embalo pra ir beijando qualquer muchacha guapa que cruzasse no caminho dele.
Mas a noite antológica que ficou marcada indelevelmente na minha memória foi quando, na hora da gente se dar as mãos, uma menina-moça, DSL, me estendeu a aveludada mão pra pegar na minha. Mão!
Comecei a tremer, suar frio, gaguejar, pernas bambas, coração a 78 rotações por minuto quase saltando boca afora, alucinação, fascinação!
A doce presença da morena invadiu os sete buracos da minha cabeça –olhos boca narinas orelhas-, finalmente eu ia pular ao lado da estonteante Sereia das duas margens do Rio Corrente, realizar um sonho acalentado há muito, mesmo sabendo não ser a hermosa pitéu pro meu bico, um simples operário. Não era flor pro meu jardim, como diz o samba-canção.
Afinal se tratava nada mais nada menos do que da garota mais exuberante da Rua de Cima, cobiçada e idolatrada por todos os adolescentes e adultos do pedaço.
Disparado, o maior objeto de desejo dos marmanjos da área.
Eu adolescendo, 12, 13 anos…
Enquanto rodopiávamos, o pierrô [le fou] aqui fechava os olhos e torcia pra que aquele ensaio rolasse até o raiar do dia, mãos entrelaçadas com as da pierrete.
Delírios!
Transe!
Adormeci com o pensamento lá longe, na morena lindaça cravo e [la flor de la] canela, sonhando em me anidar no universo do corpo dela.
PS: anidar [aninhar, na língua de Cervantes] dá um putanagrama…
Biblioteca Campesina, 9 fevereiro 2024
(*) Por Joaquim Lisboa Neto, colunista do Jornal Brasil Popular, coordenador na Biblioteca Campesina, em Santa Maria da Vitória, Bahia; ativista político de esquerda, militante em prol da soberania nacional.