Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.
Art. 1 Declaração Universal dos Direitos Humanos
“Catadores” são pessoas – que “nascem livres” – circulam pelas ruas da cidade com seus sacos de coleta, com carrinhos, da forma que for possível, para buscar o seu alimento e de seus todos os dias.
Ninguém os vê – não há “espírito de fraternidade” – apenas são vistos e desprezados quando fazem alguma separação na frente de casas ou edifícios.
“Resíduos sólidos” no Brasil é caso sério. Seríssimo. Estamos diante de tratar a existência digna, dos direitos humanos ou da exclusão ou descarte de seres humanos. Há uma década não poderia mais haver lixões no país, mas eles estão aí para emporcalhar o ambiente já tão combalido. E catadores são perseguidos, como foi caso recente em Porto Alegre, sendo um deles agredido pela Guarda e seu material jogado num caminhão triturador de lixo. Logo, eles que todos nós deveríamos apoiar.
Catadores, coletores, recicladores ou como venham a ser chamadas as várias atividades que envolvem a busca dos resíduos sólidos para a sobrevivência são chamados de “excluídos”, mas já está sendo um eufemismo para o “descarte” do próprio trabalhador/ catador.
Somos bombardeados por artigos, teses e notas que, no futuro imediato, é preciso pensar na “adaptabilidade”, aprendizado contínuo e uma mentalidade global, pois seriam essenciais para prosperar no mundo do trabalho.
E vem o foco/holofote de cima para baixo: “à medida que as tecnologias e as necessidades do mercado evoluem estar preparado para as profissões emergentes será a chave para o sucesso profissional no futuro”, diz um artigo que leio.
Ora, sabemos que a evolução é brutal. Há 50 anos ter uma máquina de escrever portátil em casa era um luxo. Hoje, não ter um celular inteligente à mão é estar fora do mundo.
E as questões não ficam por aí, vem a lista das profissões que não mais existirão. Falam do trabalho remoto, híbrido, se voltamos ou não aos escritórios, como se tudo girasse em torno de um mundo de altas tecnologias e incomensuráveis possibilidades.
Apesar dos programas do “Minha Casa, Minha Vida”, temos um déficit habitacional de mais de 6 milhões de lares. Para construir tudo isto, mesmo com o avanço dos blocos nas construções, produção em série, precisaremos de mão de obra braçal, talvez de muitos catadores dos dias de hoje.
Não bastassem estes recorrentes papos no mundo das banalidades, o trato do lixo, dos descartes, dos desperdícios, quando não se sabe para aonde vão as coisas, se vão parar num lixão ou se é reciclável, reaproveitado, os governos ficam buscando soluções com a iniciativa privada, deusa absoluta do mercado, propondo parceirizações, PPPs, concessões e outras modalidades de convivência para a sobrevivência dos seus governos incompetentes, agentes do capital e nada mais.
O mundo, em especial, o Brasil é mais complexo do que pensam “estudiosos” de gabinetes.
Em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, houve um retrocesso na “coleta seletiva”, iniciada em 1990, no governo do prefeito Olívio Dutra (PT). Na cidade há tempos temos contêineres nos quais o povo coloca tudo misturado, porque não há horários certos para a coleta do chamado “lixo seco”, para o qual não se há contêineres.
Já em Caxias do Sul, também no Rio Grande do Sul, há mais de 20 anos existem dois contêineres para a separação dos resíduos, processo iniciado no governo de Pepe Vargas (PT), continuado sem interrupções pelos governos posteriores.
Em Canoas, vizinha de Porto Alegre, há coleta adequada há mais de uma década, também com dois contêineres.
Lixos diversos e entulhos com as enchentes, em especial a de maio de 2024, levaram à criação dos chamados lixões provisórios, bem como problemáticos foram os resíduos levados a “aterros sanitários”, não licenciados devidamente. Porém, os órgãos ambientais e os de controle chegaram a fazer alguns questionamentos, mas nada de fato foi averiguado até suas efetivas consequências, nem penalidades foram aplicadas até o momento.
Numa breve pesquisa, vimos que no Rio Grande do Sul há 39 áreas para receber os resíduos, divididas em: 10 privadas, quatro consórcios municipais e 25 administradas por municípios. Para um estado com 10 milhões e 800 mil de habitantes parece pouco.
Já Santa Catarina com quase 8 milhões é vanguarda no tema da erradicação dos lixões.
Santa Catarina, estado vizinho do Rio Grande do Sul, foi o primeiro no país a erradicar os lixões, substituídos por aterros sanitários, antes mesmo da publicação da Política Nacional dos Resíduos Sólidos. Atualmente, existem 36 aterros sanitários em todas as regiões, mas as responsabilidades e ações do Estado permanecem em pauta, diz representante do governo.
Ou seja, comparativamente, mais uma vez, o Rio Grande do Sul mostra seu atraso.
O DRAMA EM PORTO ALEGRE
A cidade é tida como pioneira em galpões de reciclagem, as Unidades de Triagem, com a unidade emblemática da Vila Pinto, puxada pela saudosa Marli Medeiros.
Na atualidade em torno desta inciativa tem um conjunto de ações que vale a pena conhecer: https://www.ceabomjesus.org/conhe%C3%A7a-o-cea/nossas-iniciativas
Mas eu diria que é um oásis no deserto, pois há unidades que mal se sustentam. Com as enchentes, várias delas foram atingidas, danificadas, e até hoje não tiveram a devida atenção das autoridades. O mesmo aconteceu com várias unidades na região metropolitana.
É mais uma razão para que o atual governo local, reeleito, em outubro, avance em sua sanha privatista.
O VIDRO COMEÇOU A TER VALOR
Sempre tido como o vilão dos resíduos, o vidro quebrado, até mesmo as garrafas inteiras, acaba de ter “valor” de uma hora para outra.
Uma iniciativa que partiu da Associação Brasileira de Vidros e empresas do setor querendo contribuir com a coleta de cacos de vidro” parece que começou a dar valor ao que antes ninguém queria ver pela frente. O descarte irregular desse tipo de material traz riscos, sobretudo para garis e trabalhadores da coleta com caminhões. E foi proposta a colocação de contêineres especiais. Nos quais qualquer morador pode depositar restos de vidro nos coletores, inclusive donos de bares e restaurantes.
Nas Unidades de Triagem o vidro era tido como um problema, como dissemos, não apenas pelo perigo das machucaduras, mas, segundo se dizia, porque não havia um mercado adequado, mas a “história” não era bem assim. Há uma disputa em curso sobre este tipo de recolhimento. Tanto que a Prefeitura de Porto Alegre não buscou uma solução com as Unidades de Triagem, mas fez uma parceria com a empresa Vidrofix Comércio de Sucatas LTDA, que assumiu a responsabilidade pela coleta e reprocessamento do vidro descartado. A vencedora do edital, realizado em março do ano passado, consegue, como contrapartida, reaproveitar o material recolhido. A licença concedida autorizou 30 coletores, em 2024.
A PPP DA CAPITAL
Talvez o mais correto seria a PPP do Capital. Dos negócios, da exclusão das pessoas, dos descartes de tudo.
A toque de caixa começou e avança a tentativa de impor uma PPP que transfere o Gerenciamento dos Resíduos da Cidade, por 35 anos, para a iniciativa privada. A UniCatadores (União dos Catadores), com o apoio de mais de 30 entidades, conseguiu liminar na Justiça solicitando a ampliação do debate sobre o Edital lançado pela Prefeitura. Há um grupo que está buscando meios para Existe uma equipe buscando atenuar os efeitos maléficos da PPP sobre os catadores, caso venha a acontecer. Além de assegurar duas audiências públicas na modalidade presencial e não apenas uma, como foi proposta pelo município e online, os catadores com apoio da sociedade civil se mobilizam.
A Prefeitura como a Câmara acham que todos podem estar ligados num celular inteligente com dados móveis para participar.
É não apenas a exclusão de um negócio do mercado de trabalho, mas a mais brutal exclusão digital, com a negativa de encontros presenciais.
Há questões impactantes no Edital, pois nada fica claro nem garantido aos catadores nem aos galpões.
Tampouco há garantias sobre a manutenção do Auxílio Reciclagem. O Fórum de Catadores das Unidades de Triagem não teve qualquer retorno governamental. O que recebem é muito pouco e não há perspectivas de reajuste neste ano. Pelo que apuramos somente 700 pessoas receberiam este auxílio, sendo que deve haver 10 vezes mais pessoas nesta situação de “catadores”.
Fala-se de “espera de um milagre”. Mas não há milagres neste sistema de exclusão e descarte de seres humanos.
HORA DE MOBILIZAÇÃO
As audiências públicas presenciais podem ser o grande momento de retomada das lutas do segmento. Historicamente, os catadores tem se mobilizado dentro de suas precariedades, muitos vindo a pé até a Câmara Municipal puxando ou empurrando seus carinhos.
O mesmo deve voltar a acontecer neste alvorecer de 2025.
Mas não deveria ser um tema de preocupação apenas para quem é catador, mas para todos nós cidadãos que produzimos resíduos, descartes de todos os tipos.
Nós o povo deveríamos estar na linha de frente de defesa destes cidadãos.
Por isso, abrimos o texto com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e fechamos com ele:
Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.
Art. 1 Declaração Universal dos Direitos Humanos
(*) Por Adeli Sell, professor, escritor e bacharel em Direito.
*As opiniões dos autores de artigos não refletem, necessariamente, o pensamento do Jornal Brasil Popular, sendo de total responsabilidade do próprio autor as informações, os juízos de valor e os conceitos descritos no texto.