Ex-marido de Iracema São Tiago dirigiu o Bancesa, liquidado por desviar R$ 134 milhões da União e do INSS nos anos 90; valor corresponde hoje a R$ 1,45 bilhão; sobreposta a unidade de conservação, Fazenda Junco I foi transferida para ex-esposa em meio à falência do banco
No mês passado, o Conselho Comunitário de Jericoacoara realizou uma série de protestos contra um acordo que vinha sendo costurado entre a Procuradoria Geral do Estado do Ceará (PGE-CE) e a empresária Iracema Correia São Tiago. As negociações buscavam indenizar Iracema e seus herdeiros para que abrissem mão de parte de um imóvel rural cuja matrícula se sobrepõe a 83% da Vila de Jericoacoara, um dos destinos turísticos mais procurados do país. Em troca, ela receberia 19 lotes desocupados na vila, localizada a 16 km da sede do município de Jijoca de Jericoacoara.
Revelado em primeira mão pelo jornalista Carlos Madeiro, do UOL, o caso ganhou projeção nacional, sendo destaque na edição de 26 de outubro do Fantástico, da TV Globo. Com a repercussão, o procurador-chefe da Procuradoria do Patrimônio e Meio Ambiente (Propama), Marcus Claudius Saboia Rattacaso, suspendeu o acordo. Segundo a decisão, de 29 de outubro, foram identificadas inconsistências na matrícula da Fazenda Junco I. Segundo o Ministério Público do Ceará (MPCE), houve um aumento de 483,45 hectares no tamanho da propriedade, lavrado em cartório em dezembro de 2007 — cinco anos depois da criação do Parque Nacional de Jericoacoara, de proteção integral.
Mas quem é a empresária que se diz dona de Jeri? Em vídeo publicado ontem (7) no YouTube, De Olho nos Ruralistas aborda o histórico da família do ex-marido de Iracema, José Maria de Morais Machado, diretor do Bancesa, banco liquidado pelo Banco Central em 1995 após uma série de fraudes contra a União. Adquirido pelo banqueiro em 1983, o imóvel foi transferido para o nome de Iracema na mesma semana em que a Justiça confirmou a falência do Bancesa, em agosto de 2003. O congelamento dos bens dos diretores havia sido decretado seis meses antes, em fevereiro.
A reportagem também teve acesso a processos judiciais em que pequenos agricultores alegam terem sido vítimas de intimidações promovidas pela família, que derrubou cercas a fim de expulsar posseiros e consolidar o domínio territorial na costa cearense.
O caso de Jericoacoara marca a estreia de uma nova editoria audiovisual deste observatório: De Olho no Litoral explora a fome de empresários — do agronegócio, da energia, do setor imobiliário — pelas praias brasileiras. Quem são esses senhores? Como eles dobram o Estado sob o peso do capital? Do outro lado, a resistência de pescadores, marisqueiras, indígenas e quilombolas para defender seus territórios e proteger nossos ecossistemas marítimos.
Confira o primeiro episódio:
DIVÓRCIO FOI AVERBADO NA SEMANA QUE JUSTIÇA DECRETOU INDISPONIBILIDADE DE BENS
Na época da compra das terras em Jericoacoara, José Maria de Morais Machado atuava como diretor do Bancesa, antigo Banco de Crédito Popular de Sobral. A instituição foi fundado por seu pai, Manoel Machado de Araújo.
Na matrícula da Fazenda Junco I, o ex-marido de Iracema aparecia como dono até agosto de 2003. A averbação do divórcio e a transmissão da propriedade ocorreu na mesma semana em que o Bancesa teve sua falência confirmada, no dia 20 daquele mês, por decisão do juiz João Luís Nogueira Matias. A sentença pedia a indisponibilidade de bens dos administradores. Em 26 de agosto, Iracema São Tiago foi oficializada como nova proprietária da fazenda, após a partilha dos bens do casal.
O banco da família Machado foi liquidado pelo Banco Central em 1995, após uma investigação constatar que seus executivos burlaram o repasse de tributos federais e contribuições previdenciárias ao Tesouro Nacional. Os diretores foram denunciados por apropriação indébita, e José Maria foi condenado em 2004 pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) a oito anos de prisão em regime semi-aberto. Ele faleceu quatro anos depois, em 2008.
Os recursos desviados pelo banco entre 1994 e 1995 somavam R$ 134 milhões. Corrigido para os dias atuais, o valor equivale a R$ 1,45 bilhão, conforme dados do Índice Geral de Preços do Mercado (IGP-M), elaborado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Apesar dos pagamentos realizados pela massa falida do banco, o Bancesa ainda aparece na lista dos mil maiores devedores da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), na categoria de pessoa jurídica. Segundo a última atualização, os débitos inscritos na Dívida Ativa da União somam R$ 429 milhões. Em 2017, eram de R$ 1,4 bilhão.
O processo corre até hoje na Justiça Federal no Ceará. Em 2023, após uma tentativa de saque de R$ 20 milhões da conta bancária da massa falida, o juiz George Marmelstein Lima determinou um novo bloqueio, de R$ 286 milhões.
FAMÍLIA NEGA RELAÇÃO ENTRE MATRÍCULA E FALÊNCIA DO BANCESA
A reportagem procurou os representantes da família, que responderam através de sua assessoria de imprensa. A nota afirma não haver relação entre Iracema São Tiago e a situação do Bancesa na época em que a Fazenda Junco I foi transferida. “A sra. Iracema e José Maria foram casados por 25 anos e se separaram de fato desde 1989”, diz o texto. “Em 1995, o divórcio foi homologado na justiça e a partilha de bens foi oficializada”.
A família afirma ainda que, quando o Banco Central decretou a liquidação extrajudicial do Bancesa, em 1995, “a meação da esposa (isto é, os bens que cabia à esposa em razão da separação e por conta do regime de casamento) não respondia pelas dívidas do marido”.
Sobre as matrículas em negociação junto à PGE-CE, a nota afirma que as ações não tratam de reintegração de posse e são processos diferentes relativos às fazendas Junco I, Junco II e Caiçara. “Pelo acordo firmado com o Governo do Estado do Ceará, a sra. Iracema Correia São Tiago receberia apenas as terras remanescentes, cerca de 4% do total a que teria direito, que não estejam ocupadas”, informa a família. “Ou seja, moradores, comerciantes e empresários não serão afetados. Além disso, ela renuncia de forma expressa qualquer pedido indenizatório contra o Governo do Estado do Ceará”.
Em relação à sobreposição de 1.883 hectares ao Parque Nacional de Jericoacoara — 21% da área total delimitada em 2002 —, a família diz que “existem pedidos de pagamento de indenização para os imóveis, que deveriam ter sido desapropriados pelo Governo Federal por conta da criação da mencionada Unidade de Conservação”. Conforme revelado em reportagem do UOL, uma perícia judicial avaliou as três fazendas pela quantia astronômica de R$ 624,7 milhões. Segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável pela gestão do parque, o valor indenizável é de 4,24 milhões, segundo tabela de preços de 2019.
A íntegra da nota está disponível aqui. Os pontos específicos relativos ao aumento de 483,45 hectares na matrícula da Fazenda Junco serão abordados em reportagem específica.
HISTÓRICO JUDICIAL INCLUI INTIMIDAÇÕES, DESPEJO E CÃES ABANDONADOS
A negociação em torno das terras de Jericoacoara não é a primeira ofensiva fundiária do clã Machado. Relatos de agricultores dão conta de intimidações realizadas por José Maria e seu filho, Estevan São Tiago Machado, fruto do casamento com Iracema. Os dados foram obtidos a partir de documentos em processos judiciais em curso no Tribunal de Justiça do Ceará.
Em um dos casos, uma agricultora afirma que ela e sua família sofreram pressões para vender lotes a José Maria Machado desde os anos 1980. Segundo seu relato, o banqueiro costumava derrubar cercas e impor acordos para que pequenos proprietários deixassem a região.
Trinta anos depois, em 2012, Estevan foi acusado por dois posseiros do município vizinho de Cruz, onde está localizada parte da Fazenda Caiçara, uma das propriedades sobrepostas ao Parque Nacional de Jericoacoara. Eles movem ações de reintegração de posse contra Estevan, que teria derrubado cercas e intimado famílias instaladas na região da Lagoa de Jijoca, acompanhado de força policial.
Em Fortaleza, capital do estado, a ofensiva da família Machado para preservar o patrimônio incluiu um episódio em que a Santa Elisa Ltda, empresa imobiliária administrada por Iracema, demoliu a moradia de Manoel Messias Monteiro dos Santos em 2020. Manoel afirma que, ao retornar para sua casa, encontrou parte do imóvel destruído e seus animais de estimação soltos na rua. No espaço, ele mantinha uma escolinha de futebol para a comunidade local.
A mesma empresa é alvo de uma ação judicial movida em 2016 pela Associação Brasileira dos Defensores dos Direitos e Bem-Estar dos Animais. A ONG alega que a Santa Elisa estaria retirando cachorros de abrigos para utilizá-los como “guardas”. A peça diz que os cães são deixados sem água ou comida, em estado de abandono.
A Eco Jeri Participações, outra empresa de Iracema, é alvo do Ministério Público pelo abandono de um prédio, sob risco de desabamento, no bairro Andreota, zona nobre da capital.
‘NÃO HÁ ABANDONO DE PATRIMÔNIO’, DIZ FAMÍLIA
Questionada sobre os processos judiciais envolvendo a família São Tiago-Machado, a assessoria informou que as acusações são “totalmente infundadas” e que não há nenhum abandono da família quanto a seu patrimônio:
— José Maria Machado era um empresário muito bem sucedido do setor de couro e de cera de carnaúba do município de Sobral, de uma família muito tradicional. Ele começou a adquirir as áreas no então município de Cruz na década de 80, acostando diversos contratos de compra e venda bem como recibos que comprovam as compras, sendo estas legítimas e válidas. Nunca houve denúncias em relação à sua conduta nesse setor.
A família diz que o autor da ação de reintegração de posse, Valdir Ferreira, após ter vendido a área a José Maria — e após seu falecimento — resolveu se apossar indevidamente e reivindicar a área, “em uma manobra de má-fé”. A nota prossegue: “Convém mencionar que o autor (Valdir) já obteve título dominial fornecido pelo Idace [Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará] em outra área. Aguardamos a tramitação do processo e espera-se a total improcedência da ação”.
Sobre o imóvel abandonado em Aldeota, a assessoria informa que há uma ação judicial movida pela Prefeitura Municipal de Fortaleza que visa anular a matrícula do imóvel, de propriedade da Eco Jeri Participação Ltda, alegando a existência de um loteamento de 1949 que previa a instalação de uma praça. “Há, assim, fundada dúvida quanto à propriedade do imóvel, em que pese o interesse das empresas em dar destino comercial ao bem, encontram-se impossibilitadas, dada a postura municipal”, diz a nota.
Em relação aos cachorros, a empresa Santa Elisa afirma que os cães estão em condições adequadas, inclusive com as vacinas obrigatórias em dia e boa saúde. E completa: “A Sra. Iracema foi administradora e não sócia da empresa Santa Elisa entre os anos de 2019/2023, período posterior ao ocorrido, não tendo nenhuma relação com os fatos”.
(*) Tonsk Fialho é pesquisador e repórter.
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