Quando a redação do Fêmea me pediu para contar como foi minha campanha eleitoral para a Câmara Legislativa do Distrito Federal eu vacilei porque senti que seria difícil falar de uma campanha onde não houve a vitória esperada, ou seja, a eleição. Refletindo sobre o assunto, concluí que tenho o dever de falar sobre esses três meses em que passei fazendo a política elaborada pelos homens e praticada quase que exclusivamente por eles e por mulheres, na sua maioria, com práticas masculinas.
Minha candidatura se deu no embalo da Lei das Cotas. De tanto falarmos na necessidade de priorizarmos aluta para o acesso das mulheres ao espaço político, considerei que devíamos passar da teoria à prática e, aceitando o desafio de minhas companheiras do Núcleo Feminista do PPS, lancei-me nesta aventura.
Agora, tudo passado, furtar-me a falar sobre a experiência que vivenciei seria tirar a oportunidade de centenas de mulheres saberem como ocorre a campanha de uma mulher, inserida no movimento feminista e com uma bagagem legislativa, de nove anos acompanhando os trabalhos no Congresso Nacional. Daí minha saída da ressaca pós eleições e forçar minha memória, meus nervos e sentimento e procurar ser o mais imparcial possível, sem, entretanto, desprezar as emoções que porventura surjam no decorrer desta narrativa.
O Núcleo que me incentivou a participar das eleições é pequeno o mesmo ocorrendo com o partido que, durante o processo eleitoral, esteve em um contexto político local difícil.
Os amigos e familiares que seofereceram para colaborar naempreitada, além de poucos, nãotinham experiência nesse tipo de luta.As dificuldades começaram logo noinício e principalmente por falta dedinheiro. Marketing, nem pensar, nãodava para pagar. Os colaboradoresalugaram uma sala e pagaram logo ostrês meses de aluguei. O material depropaganda foi feito com dinheiroarrecadado de festinhas, rifas edoações. Tudo muito improvisado efeito de forma amadorística. O PPS,apesar de receptivo e bemintencionado, não possuía recursosfinanceiros suficientes para fornecer omaterial necessário para uma campanha tão rica como a doDistrito Federal.
O partido pregava a igualdade de oportunidadesentre homens e mulheres, porém não tinha condições de”controlar” os homens que, em maior número, com suasestruturas corporais mais volumosas, sempre ficavam àfrente das mulheres nas manifestações públicas. Tínhamosque, literalmente, usar nossa “força tisica” para ultrapassara barreira masculina, mais forte e de fala grossa e alta, docontrário, nós mulheres, não aparecíamos. Era umaverdadeira luta corporal. Geralmente quando conseguíamosromper a barreira de homens, a manifestação já estava nofinal ou já ia se deslocando para outro lugar.
Tentei participar de comícios, porém logo me afastei deles. Além do empurra-empurra, era tanto discursodifamatório que me fazia mal. Resolvi partir para o contatodireto com os eleitores, através de reuniões articuladas ouno corpo à corpo em locais de maior fluxo de gente.
No início, escutei dezenas de promessas de apoio, planos de reuniões, debates, encontros que ao longo dos 90 dias de campanha, foram reduzindo e quase só serealizaram aqueles programados por mim mesma ou pelo grupo mais chegado.
Há pouco menos de um mês das eleições, pressentique não alcançaria os votos necessários. Pensei em desistir,largar tudo e ir para a beira da praia, mas senti que seriacovardia para com as pessoas que acreditavam em meutrabalho e procuravam meu comitê de forma espontâneadizendo que votariam em mim, apesar da minha candidaturanão pertencer a coligação que se considerava de esquerdae, portanto, a perfeita.
A minha candidatura não partiu de uma deliberaçãodiscutida dentro do movimento feminista de Brasília, comoum todo. Talvez por isso, não tenha encontrado o apoionecessário para que a mesma pudesse ser considerada umacandidatura representativa desse movimento.
Ficou claro para mim nestaseleições, que, na hora de cada umaescolher seu representante, é muitocomplexo compor um ideário políticomais amplo, com o ideário feminista.
Mesmo assim, encontreisolidariedade de companheiras queconseguiram romper o preconceitoestagnante das oligarquiaspartidárias e apoiaram a minhaplataforma política.
Escutei muito que campanhapolítica é briga de foice, é cobraengolindo cobra. Não existe respeito,não existe ética. Eu me recuso a vere fazer política desta forma.
Para mim, a política é uma arte e através dela é que se consegue influenciar para que todos, sem discriminação de qualquer natureza, sejam sujeitos e capazes de renovar o mundo de forma democrática. Sei que podemos mudar efoi isto que tentei fazer. Jurei a mim mesma que não atacarianinguém, falaria apenas do que pretendia fazer comodeputada distrital e isto, dentro da competência de umaAssembléia Legislativa. Assim, levando o conhecimento daLei Orgânica do Distrito Federal, pedia o voto para pôr emprática o que ela estipulava.
A população ainda vê o político como uma tábua desalvação para suas necessidades imediatas. Recebi pedidos de tijolos, telhas, óculos, consultas e exames médicos, orientação jurídica sem limites, inclusive com pedidos deagenciamento para soltura de familiares presos.A falta de calçamento em um grandenúmero de ruas também eraassunto para se exigir promessaem troca de voto, bem como aeliminaçãodeumataxadeesgoto,reclamação esta feita de norte àsul do DF. Além desses e outrospedidos, ainda escutei pedidodireto de dinheiro e trabalho emmeu possível futuro gabinete.
Aliás, pedido de emprego não vinha apenas da classe menosfavorecida. Pessoas de nível universitário, profissionais jáestabelecidos me procuraram em busca de um empregoseguro e com vantagens, por quatro anos. Isto demonstra oquanto o povo vive longe de uma qualidade razoável devida e da assistência obrigatória que o Estado tem o deverde dar e, também, longe de uma prática política semfavoritismos. A todos os pedidos apontava minhaimpossibilidade de atender, inclusive explicando sobrecompetências do legislativo, executivo e judiciário.
Tenho que reconhecer que houve um saldo positivo. Ninguém sai imune de uma campanha política. É uma experiência impar e valeu a pena vivê-la. Foi uma oportunidade para melhor conhecer minha cidade, seus habitantes, seus problemas e refletir sobre como modificar a situação que fica longe da tão decantada cidade da promissão. Foi, ainda, uma oportunidade para conhecer as pessoas e através deste conhecimento, valorizar algumas amizades. Na onda da política se descobre verdadeiramente quem é quem. Mudam valores, mudam ideais, ao tempo em que surgem novos valores e novas ideias sobre a vida e sua finalidade.
Conheci também muitos lugares antes nuncaimaginados. Frequentei ambientes gays e com isto,aumentou minha admiração por esse segmento da sociedade,tão discriminado e desprezado. Nesses ambientesaconteceram coisas incríveis. As mulheres, de um modogeral, queriam saber se eu era “entendida”. A esta pergunta,que foi feita várias vezes e sempre por mulheres, eurespondia: sou entendida em direitos humanos, em combateà discriminação, em igualdade de todos perante a lei.
Houve uma vez em que procurei chegar perto deum casal de homens várias vezes e sempre me intimidavacom o enlevo com que se olhavam. Lá para as tantas, resolviabordá-los e dar o meu recado: “desculpe atrapalhar estenamoro, mas eu quero pedir o voto de vocês para mim. Sou… (e desfilava meu currículo e programa) … e finalmentequeria que vocês pensassem no que eu lhes disse com omesmo carinho com que estavam se olhando”. Eles, aprincípio ficaram calados e depois que saí de perto, vi quetrocaram algumas palavras e um deles veio à mim e disseque, pelo que eu tinha dito no final do meu discurso,resolveram votar em mim. Nunca tinham se deparado comeste tipo de comportamento de uma pessoa não “entendida”.
Eu tinha tratado o namoro deles como normal e istosignificava que os respeitava. Se fosse eleita, com certezairia defende-los na Câmara Distrital.
Outros “causos”, entre osmuitos, vale à pena contar: Umamulher grávida perguntando sepodia colocar meu nome em suafilha, mas, só se eu ganhasse.Outra que queria um emprego,mas não trabalho e, se euassinasse um papel prometendoisto, ela me arranjaria mais de5.000 votos. Outro se prontificoua me ajudar sem nada em troca e,no dia seguinte apareceu com umcarro velho dizendo que haviacomprado para fazer minhacampanha e pediu 1.500 reais para pagá-lo. É claro que nãofoi atendido e desapareceu do comitê e da minha vida.
Um homem, fanático do Pró-vida, avançou em umade minhas irmãs, marinheira de primeira viagem nadistribuição de panfletos, e rasgou meu folder me chamando deaborteiraeapoiadeiradecasamentode”veados”.Areaçãodela foi de pânico e indignação. Quando tudo se acalmou,uma moça que estava olhando a cena veio a mim e pediu omeu folheto dizendo ter sido vítima de aborteiro clandestinoe que era a favor do aborto legal. Se eu defendia isto, o seuvoto era meu.
Enfim, foram três meses de intenso trabalho, poucashoras de sono, alguns dissabores e grandes descobertas delugares, de pessoas, de objetivos. Olhando para trás, possoafirmar não ter do que me arrepender. Gastei todo meu chequeespecial, estou ainda com algumas dívidas (que pagarei nomesmo espaço de tempo) mas, valeu a pena pois o mundo dapolítica é fascinante e só através dela é que conseguiremosalcançar a justiça social e a real democracia. Ao analisar os votos dos meus mais de seiscentos concorrentes, chego àconclusão de que, sem infra-estrutura, sem dinheiro, sem oaparelhamento do governo nem de qualquer outra entidade eem tempo reduzido, não fiz má figura.
Será que apenas o “ser eleita” é que seria vitória?Ou será que, também não é vitória esse aprendizado que nãofoi só meu, mas também, daqueles que estiveram duranteesses meses vivendo a mesma experiência? De minha parte,se eu não tivesse enfrentado o desafio, se não tivessedesarrumado (literalmente) minha vidinha de aposentada eintegrante do CFEMEA, não teria esta história para contar.Saber que 622 pessoas no Distrito Federal acreditaram queeu poderia ser/fazer uma política diferente como era o meulema, e que comigo, poderia ser um começo de algumamudança para mulheres e homens excluídos social epoliticamente é, certamente, uma vitória. Lembrando tudoque passei e passaram minhas amigas e amigos, concluoque valeu a pena.
Como diz o poeta Fernando Pessoa, no poema “Mar Portuguez”: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Valeu.
(*) Por Iáris Ramalho Cortês, advogada e membro do Colegiado do CFEMEA
Artigo reproduzido do Jornal Fêmea n. 70, p. 6 e 7 – novembro/1998
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