Após mais de três décadas servindo a vários governos, personagem virou ‘miliciano’ nas mãos de bolsonaros
Em 1986 o Brasil assinou com a Organização das Nações Unidas (ONU) o compromisso de erradicar a poliomielite até 1990. Também conhecida por paralisia infantil, a pólio vitimou milhares de crianças brasileiras nas décadas anteriores.
Em 1960, com o surgimento da vacina oral, desenvolvida pelo cientista Albert Sabin, a vacinação em massa de crianças tornou-se mais fácil. Mas só em 1980 aconteceu a primeira campanha nacional. Naquele ano, segundo reportagem divulgada no ano passado pela BBC News, foram registradas 1.290 ocorrências da poliomielite no país. No ano seguinte, em razão da primeira campanha, esse número caiu para 122. E em 1982, ocorreram, nacionalmente, somente 45 casos.
Ainda que os números divulgados pelo governo militar não fossem lá muito confiáveis, as campanhas surtiam efeito. Mas era preciso erradicar a poliomielite definitivamente, pois enquanto o vírus da pólio estivesse circulando entre a população, a qualquer momento um novo surto poderia ocorrer.
Em meados dos anos 1980, com o Brasil já vivendo o regime democrático, o governo decidiu lançar mão de uma grande campanha de vacinação para erradicar em definitivo a doença, depois de um nova epidemia de pólio, que afetou principalmente o Nordeste, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
O publicitário e artista plástico Darlan Rosa, que já tinha feito outros trabalhos de comunicação para o governo na área de saúde, foi convidado para criar uma logomarca que identificasse a meta de erradicação. No livro elaborado pelo Ministério da Saúde em 2013 para comemorar os 40 anos do Programa Nacional de Imunizações (PNI), Darlan explica como isso aconteceu.
“Levaram-me para uma cidade do Nordeste para acompanhar a campanha de vacinação e me inspirar. Os pais, certamente, eram e ainda são os principais responsáveis por levar suas crianças ao posto de vacinação. Naquela época, as campanhas de mobilização tinham um tom aterrador! Lembro-me de um dos filmes em que muletas, pernas de pau e todo tipo de prótese, em fundo negro, andavam de um lado a outro, com direito a música de terror!”, lembra Darlan.
Foi então que ele teve a ideia de trazer a criança para dentro do processo, transformando o Dia Nacional de Vacinação em um momento de festa. E o que era para ser apenas uma logomarca, virou um personagem: O Zé Gotinha. “Comecei a pensar o personagem a partir do desenho das duas gotinhas da vacina. Como ser imaginário, não humano, tinha uma forma muito simples, sem pés ou mãos”, explica Darlan. Com essa simplicidade, ele quis criar uma marca que pudesse ser reproduzida facilmente em qualquer região do país, de forma a popularizar a campanha de vacinação.
Oposição do mercado
No começo o Zé Gotinha enfrentou a oposição das grandes agências de publicidade do governo, que queriam criar, a cada ano, uma nova campanha, demandando mais gastos públicos, claro.
O jornalista Chico Sant’Anna, que chefiou a comunicação do Ministério da Saúde no período de implantação do Zé Gotinha, entre 1986 e 1987, lembra da pressão que veio de fora contra o novo personagem.
“Até então, quem fazia as campanhas da poliomielite ou eram artistas e pessoas com visibilidade pública que tinham programas infantis no rádio ou na TV, ou eram produtoras voltadas para a área infantil. E eram campanhas muito caras. A vantagem de você ter o Zé Gotinha era que, primeiro, você já tinha um case pronto, não tinha que pagar por isso a cada campanha. Segundo, a criação era feita pelo próprio Darlan, que era funcionário do governo, e pelo pessoal do Ministério da Saúde. A campanha, além de ser muito eficiente, ficou muito mais barata”, disse.
Vencida a oposição do mercado, o personagem criado por Darlan em pouco tempo caiu no gosto popular. “O personagem entrou no ar em 1987 e foi um sucesso! A aceitação foi tamanha que, em 1988, o Zé Gotinha passou a representar todas as vacinas do PNI (Programa Nacional de Imunizações)”, escreveu Darlan Rosa em seu depoimento.
O sucesso do Zé Gotinha repercutiu lá fora. Alguns anos depois, Darlan foi convidado pelo Unicef para criar a campanha de combate à pólio em Angola. Lá ele criou a estrelinha Cuia, que também ajudou na erradicação da poliomielite naquele país africano.
Programa de Estado
Ao contrário de outros programas sociais, que mudam de nome a cada novo governo, o Zé Gotinha foi mantido ao longo das décadas seguintes. Durante os governos Sarney (1985-1990), Collor (1990-1992), Itamar (1992-1994), FHC (1995-2002), Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016), o personagem sempre esteve presente nas campanhas de vacinação.
Mas em 2020, no segundo ano do governo Bolsonaro, quando a pandemia do novo coronavírus passou a exigir que o Ministério da Saúde lançasse mão novamente do PNI para planejar uma vacinação em massa da população e quando o Zé Gotinha se mostraria mais uma vez útil para mobilizar a população, o governo decidiu esconder o personagem e fazer pouco caso da vacinação.
Primeiro Bolsonaro disse que a Covid-19 era apenas uma “gripezinha”. Em seguida fez propaganda de tratamentos não comprovados no combate à doença, como o uso da hidroxicloroquina, e finalmente passou a desqualificar a vacina, dizendo que quem tomasse o imunizante poderia “virar jacaré”.
O que poderia ser apenas uma brincadeira de mau gosto, mostrou-se letal. Pesquisa realizada pelo Datafolha em 12 de dezembro de 2020 apontou que naquela data cerca de 22% da população não pretendia se vacinar contra doença. Quatro meses antes, quando Bolsonaro ainda não havia iniciado sua campanha antivacina, apenas 9% da população dizia não querer tomar a vacina.
A partir de janeiro, com o crescimento assustador no número de infecções e mortes pela pandemia, a confiança na vacina voltou a subir, mas ainda assim o efeito Bolsonaro em desacreditar a imunização afetava quase dois em cada dez brasileiros.
Miliciano
Depois de desacreditar a vacinação, a família Bolsonaro agora tenta colar no Zé Gotinha uma imagem deturpada do personagem. Tudo como reação ao discurso feito pelo ex-presidente Lula dois dias depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter anulado as condenações da Lava Jato contra ele. Lula cobrou a vacinação e no meio do discurso perguntou: “Cadê o Zé Gotinha?”.
No dia seguinte o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) divulgou uma ilustração que mostra o Zé Gotinha portando uma vacina em forma de fuzil e com a mensagem: “Nossa arma agora é a vacina!”. Além do desenho de extremo mau gosto, a frase também pegou muito mal, pois o uso do “agora” demonstrava que o governo do pai dele, antes, não acredita na vacina.
Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, Darlan Rosa criticou essa tentativa de desvirtuar o espírito das campanhas de imunização. “É tudo o que eu não penso. Ele foi concebido como personagem educativo. Não há nada de educativo numa arma”, disse Darlan ao jornal.
A reação foi rápida, inclusive entre os chargistas. Latuff fez uma charge com o Zé Gotinha vestido de super herói e a capa do SUS, quebrando um fuzil e dizendo: “Ei Bananinha (apelido do filho do presidente), eu não sou miliciano!”. E o design gráfico Cacá Soares, amigo de Darlan e que desenhou o Zé Gotinha para a televisão em campanhas no passado, fez uma bela versão “Paz e Amor” do personagem símbolo.
Com o perdão da imagem, mas parece que o tiro dos bolsonaros saiu pela culatra. Em apenas 48 horas o Zé Gotinha foi um dos assuntos mais comentados nas redes sociais e a reação da população em defesa do personagem foi surpreendente. “Quando criança, era o que me impulsionava a ir tomar vacina. A minha mãe dizia: ‘vamos ver o Zé Gotinha!”, lembrou em uma postagem o bibliotecário Raphael Cavalcante.
Mesmo com todo o boicote feito pelo governo Bolsonaro, as vacinas continuam sendo aplicadas e os governos estaduais começam a adquirir o imunizante contra a Covid-19 diretamente dos fabricantes, sem esperar mais pelo governo federal. Mais uma vitória da ciência e da saúde pública, novamente com a ajuda do Zé Gotinha.
(*) Beto Seabra é jornalista e documentarista. Dirigiu o documentário O risco do artista: vida e obra de Darlan Rosa.