Comunidade localizada no oeste do Paraná vive cenário de extermínio diário, alvo de tiros, bombas e incêndios; número de vítimas aumenta a cada ataque
Há mais de uma semana, indígenas Avá-Guarani da comunidade Yvy Okaju (antes chamada de Y’Hovy), no município de Guaíra, oeste do Paraná, vivem um cenário de terror com ataques quase diários de homens com armas de fogo e bombas. Esses mesmos homens, que invadem o local encapuzados, também provocam incêndios em suas casas e plantações.
Os ataques começaram no dia 29 de dezembro, quando os indígenas tiveram suas casas queimadas por grupos armados e foram alvos de disparos de armas e bombas contra a comunidade. A violência continuou pelos próximos três dias consecutivos. No dia 30 e 31, às vésperas da virada de ano, dois indígenas foram baleados e tiveram que ir ao hospital da região.
A última ação violenta ocorreu na sexta-feira (3) e deixou quatro indígenas feridos, dentre eles uma criança e um adolescente. Uma das vítimas, um jovem de 28 anos, foi baleado no queixo e ficou com o rosto desconfigurado, como mostram registros divulgados pelas organizações indígenas. Ele segue internado em estado grave na UTI.
Já um outro jovem, de 25 anos, foi atingido nas costas, precisou passar por cirurgia na coluna e deve ficar com sequelas. Até o momento, ele não está sentindo os movimentos das pernas. Os nomes das vítimas não serão identificadas por questão de segurança.
Os indígenas Avá-Guarani se localizam na Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá, que abrange os municípios de Guaíra e Terra Roxa, e são alvos de ataques desde 2023, quando iniciaram ações de retomada na região ocupada por fazendeiros, e que passa pelo processo de regularização fundiária. As ações violentas contra a comunidade também marcaram o ano de 2024, quando os indígenas foram alvos, além de tiros com armas de fogo, de caminhões, tratores, despejo de agrotóxicos e violência física.
Os ataques que se intensificaram nos últimos dias são realizados por pistoleiros encapuzados que cercam a região e fazem ameaças constantes antes de atacarem a comunidade com armas, bombas e incêndios. Além da ameaça de fazendeiros, organizações indígenas, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), apontam que a crescente presença de imobiliárias na região, que têm interesse nas terras indígenas, também se tornaram uma ameaça às comunidades.
Com esse aumento da violência, os indígenas vivem em estado de alerta durante todo o dia, e crianças não conseguem mais dormir com medo de ataques realizados à noite, como conta à Fórum uma das lideranças da comunidade, que terá sua identidade preservada.
“O que mais tememos é pelas nossas crianças, porque a gente não tem mais a segurança de andar pela nossa aldeia, porque um desses baleados estavam andando pela estrada de dentro da aldeia, acharam ele e simplesmente atiraram. Ele perdeu parte do queixo, que foi destruído”, relata a mulher.
“A gente não consegue mais fazer nem a nossa refeição, porque o menino de 7 anos e o irmão dele estavam jantando dentro de casa quando foram baleados. Seis pessoas encapuzadas chegaram atirando“, acrescenta.
A liderança afirma que desde as primeiras ameaças, os indígenas repassaram as informações aos órgãos competentes, mas não obtiveram retorno de ações de segurança. “Não levaram em consideração até que aconteceu o primeiro ataque no dia 29, onde muitas pessoas entraram atirando contra nós. No momento, a viatura da Força Nacional não estava presente”, diz. Após o ataque, a Polícia Federal (PF) constatou a presença de 12 cápsulas de arma de fogo no local.
“Até o momento, não houve vítima fatal, mas se os órgãos competentes, que têm o poder de resolver a nossa situação, continuarem ignorando nosso pedido de socorro, sabemos que a qualquer momento a gente pode chegar a ter vítima fatal. Por isso, estamos pedindo socorro, estamos informando as autoridades, mas parece que ninguém está nos ouvindo“, se indigna a liderança.
“Até quando vamos ter que derramar sangue de nossos parentes para que as autoridades vejam e tenham empatia para resolver nossa situação?”
A mulher reforça que é preciso respostas definitivas que devolvam a confiança dos indígenas em ações de segurança, que foi perdida com a escalada da violência enfrentada dia e noite pela comunidade.
“Desde o último ataque, a gente viu que eles vieram para matar. Não é mais só para assustar. Não sabemos quem serão os próximos, de qual lado seremos atacados na próxima vez”, diz.
Crianças têm medo de acordar com o fogo
A liderança que relatou o cenário de terror à Fórum conta que é mãe, e desabafa sobre o medo em relação às crianças da aldeia, que não conseguem nem mais dormir à noite com medo de acordar com suas casas sendo incendiadas.
“As crianças não conseguem mais dormir, têm medo acordar com os tiros, com suas casas sendo totalmente destruídas pelas chamas. Estamos numa situação muito difícil, de total insegurança, sobrevivendo a cada noite e a cada dia”, relata.
“Nós que temos filhos, nos sentimos ainda mais impotentes. Sentimos que em um desses ataques, não vamos conseguir salvar crianças, não vamos conseguir salvar todo mundo. São esses sentimentos que a gente carrega, tentando permanecer vivos até de manhã”, desabafa a liderança.
Aldeia virou ‘clube de tiro’
Em grupos de apoiadores da comunidade indígena, mensagens acessadas pela Fórum mostram a revolta das populações e lideranças de organizações locais. Em um dos textos, um dos apoiadores reforça que, apesar de 13 indígenas terem sido baleados em um ano, nenhum responsável foi investigado e punido.
“É por isso que não foram pegar o depoimento de ninguém. É preciso investigação e justiça. A impunidade é fermento para novos ataques. Por isso dizem que a Yhovy virou clube de tiro“, diz.
O padre Diego Pelizzari, do Cimi, acompanha de perto a realidade no território, e também sente a revolta da falta de punições. “Frente à impunidade, porque ninguém investiga, não chegaremos aos responsáveis e principalmente aos mandantes”, cobra.
Diante dessa realidade, os indígenas realizaram uma assembleia em que lançaram o “S.O.S ALDEIA YVY OKAJU CORRE RISCO DE EXTERMÍNIO”, com uma carta endereçada à ministra Sonia Guajajara, do Ministério dos Povos Indígenas. No documento, eles pedem reforço das ações de proteção e segurança, e soluções imediatas para que “os ataques cessem urgentemente”; as “investigações sejam feitas verdadeiramente”; “os atiradores sejam punidos e se chegue ao mandante”; e que “a aldeia Yvy Okaju seja regularizada urgentemente”.
O que dizem as autoridades
A Fórum entrou em contato com o Ministério dos Povos Indígenas após o quarto ataque à comunidade, que deixou os quatro indígenas feridos, e obteve retorno da pasta afirmando que acompanha a situação junto aos indígenas por meio do seu Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Fundiários Indígenas. Além disso, o órgão informou estar em diálogo com o Ministério da Justiça e Segurança Pública para a “investigação imediata dos grupos armados que atuam na região”. Veja o posicionamento completo mais abaixo.
A reportagem também entrou em contato com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, que informou ter enviado reforços para apoiar a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e a Polícia Federal. A pasta também afirmou que no último sábado (4) aumentou em 50% o efetivo da Força Nacional na região, e nesta segunda-feira (6), dobrou o reforço em um aumento total de 100%.
Além disso, o MJ também disse que “Diante do risco de novos ataques, equipes de prontidão e sobreaviso foram acionadas para intensificar o patrulhamento na área, reforçando a segurança e auxiliando na relocação de moradores para áreas mais protegidas dentro da aldeia.
A Fórum também entrou em contato com a Prefeitura de Guaíra, mas ainda não obteve retorno. A matéria será atualizada caso um posicionamento seja enviado.
Posicionamento do MPI
O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) condena os atos de violência contra o povo Avá Guarani, ocorridos desde o fim de dezembro de 2024, na Terra Indígena Tekoha Guasu Guavira, no estado do Paraná. O MPI acompanha a situação junto aos indígenas por meio do seu Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Fundiários Indígenas e está em diálogo com o Ministério da Justiça e Segurança Pública para a investigação imediata dos grupos armados que atuam na região.
Ainda no domingo (29), imediatamente após saber dos ataques, o MPI reforçou a solicitação de presença e aumento de efetivo da Força Nacional na região dos conflitos, com base na Portaria do MJSP nº 812, de 21 de novembro de 2024, com vigência até 20 de fevereiro de 2025. A portaria autoriza o emprego da Força Nacional em apoio à Funai nos municípios de Guaíra e Terra Roxa, no Paraná, desde janeiro de 2024. A presença da Força Nacional no território acontece em articulação com os órgãos de segurança pública do Paraná e atende ao pedido do MPI ao MJSP para evitar atos de violência contra os indígenas, mobilizados pela garantia de seus direitos territoriais.
Também em dezembro de 2024, foi realizada agenda interministerial junto aos Avá-Guarani, no âmbito da Sala de Situação para Acompanhamento de Conflitos Fundiários Indígenas. Participaram representantes do MPI, da FUNAI, do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) e da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos (ONDH). A ação objetivou a coleta de informações sobre as condições de vida das comunidades indígenas da TI, para identificar suas necessidades em contexto de contínua luta pelo território e pela manutenção de sua cultura.
Histórico de retomadas
Impactados pela invasão de não indígenas em seu território desde a década de 1930 e gravemente afetados pela construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, nos anos 1980, os Avá Guarani têm realizado retomadas de terras desde o fim dos anos 1990. Atualmente, duas áreas ocupadas pelos Avá Guarani estão em processo de regularização: a Terra Indígena Tekoha Guasu Guavira e a Terra Indígena Ocoy-Jacutinga, esta última em fase de estudos.
A Terra Indígena Tekoha Guasu Guavira teve seu Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) publicado em 2018. Contudo, sob gestão do governo anterior, uma portaria da presidência da Funai de 2020 o suspendeu, mas esse ato administrativo foi revogado em 2023 pela atual presidenta do órgão, Joenia Wapichana, de modo que o RCID segue válido.
O MPI enfatiza que a instabilidade gerada pela lei do marco temporal (lei 14.701/23), além de outras tentativas de se avançar com a pauta, como a PEC 48, tem como consequência não só a incerteza jurídica sobre as definições territoriais que afetam os povos indígenas, mas abre ocasião para atos de violência que têm os indígenas como as principais vítimas.