Notícia muito importante trazida pelo Jota, dá conta de que a CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos, acolheu denúncia da DPU – Defensoria Pública da União por considerar que crime de desacato viola direitos fundamentais e a liberdade de expressão. Para o órgão internacional, que vai debater o assunto, condenação de homem que insultou PF pode violar a liberdade de expressão (https://www.jota.info/coberturas-especiais/liberdade-de-expressao/desacato-viola-liberdade-expressao-cidh-28022022).
A notícia esclarece que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) admitiu petição da Defensoria Pública da União (DPU) contra o Estado brasileiro conforme relatório publicado dia 21/2. Nesse relatório consta que a petição alegou violações à liberdade de expressão de um homem condenado pelo crime de desacato por chamar um agente da Polícia Federal de “vagabundo”.
Conforme relato da DPU, o cidadão foi denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) e julgado pela Vara Criminal de Florianópolis, cujo magistrado o condenou com base em depoimentos de outros policiais federais. A suposta vítima recorreu à Turma Recursal e teve a sentença mantida. Seu pedido ante a Turma Nacional de Uniformização (TNU) foi inadmitido, e os embargos de declaração, rejeitados.
A Defensoria Pública sustentou o esgotamento dos recursos internos, vez que uma inadmissão proferida pela Presidência da TNU é irrecorrível, enquanto um recurso extraordinário no Supremo Tribunal Federal (STF) não seria efetivo, pois a Corte já havia se pronunciado sobre outros casos de desacato, reforçando a condenação dos réus. Completou afirmando que a revisão criminal não seria um recurso efetivo e que a condenação não poderia ser discutida na esfera civil.
Para além do aspecto constitutivo do tema em debate, que afronta um princípio nuclear da carta americana de direitos, relativo à salvaguarda do processo democrático, o tema expõe um grau acentuado do modo de atuação do judiciário brasileiro que tende a esvaziar as promessas constitucionais e legislativas de realização emancipatória do jurídico. Do piso (instâncias ordinárias), ao teto (o próprio Supremo Tribunal Federal).
Com efeito, na contra-mão de um continuado adensamento que a OEA (Organização dos Estados Americanos) por seus instrumentos de monitoramento dos direitos fundamentais derivados da Convenção Americana, vem estabelecendo no sentido de que legislações nacionais e decisões jurisprudenciais em temas como desacato e difamação penal (Relatorias Especiais 1998, 2000, 2002, 2004), para afirmar “a necessidade de derrogar esta normativa a efeitos de ajustar a legislação interna aos padrões consagrados pelo sistema interamericano quanto ao respeito ao exercício da liberdade de expressão. É intenção da Relatoria continuar este acompanhamento a cada dois anos, já que é um tempo prudente para permitir, aos distintos Estados membros, levar adiante os processos legislativos necessários para as derrogações ou adaptações legislativas recomendas”; enquanto, “lamentavelmente, a Relatoria considera que não houve avanços significativos desde a publicação do último relatório sobre a questão: são muito poucos os países que derrogaram de sua legislação as leis de desacato” (https://www.oas.org/pt/cidh/expressao/temas/desacato.asp).
Admitida a petição a DPU adverte sobre o impacto que resultará desse debate quando o próprio STF em julgamento precedente, de junho de 2020, na ação de ADPF 496/2015, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), fixou a tese de constitucionalidade e convencionalidade do crime de desacato.
Parte da ementa do acórdão ((ADPF 496, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 22/06/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-235 DIVULG 23-09-2020 PUBLIC 24-09-2020), sustenta, a meu ver impropriamente, que “de acordo com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Supremo Tribunal Federal, a liberdade de expressão não é um direito absoluto e, em casos de grave abuso, faz-se legítima a utilização do direito penal para a proteção de outros interesses e direitos relevantes”.
Ressalvem-se os votos vencidos dos ministros Luiz Edson Fachin e Rosa Weber. Para Fachin, seja por ofender os tratados internacionais, seja por ofender diretamente o próprio texto constitucional, o crime é inconstitucional. Para a ministra Rosa Weber na mesma linha, no caso da tipificação do crime de desacato, sobressai o particular interesse social em que seja assegurada a livre opinião relativamente ao exercício de função de interesse público. Segundo ela, em consonância com a diretriz contínua da OEA, “uma sociedade em que a manifestação do pensamento está condicionada à autocontenção, por serem os cidadãos obrigados a avaliar o risco de sofrerem represália antes de cada manifestação de cunho crítico que pretendam emitir, não é uma sociedade livre, e sim sujeita a modalidade silenciosa de censura do pensamento“.
Os Relatórios de monitoramento têm sido enfáticos (http://www.oas.org/es/cidh/expresion/docs/informes/desacato/Informe%20Anual%20Desacato%20y%20difamacion%202004.pdf), no sentido da incompatibilidade das leis de desacato com o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos. O problema reside, se vê, lembrava o ex-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Antonio Augusto Cançado Trindade, em vencer o obstáculo do positivismo que ainda impede, no país, internalizar no direito nacional, as decisões cogentes das Cortes Internacionais de Direitos Humanos sobre Tradados e Convenções relativas a Direitos Humanos.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).
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