Você sabia que a certificação quilombola pode mudar o futuro de milhares de comunidades no Brasil? A campanha Acelera Certificação Quilombola é visibilidade, reconhecimento e dados que podem transformar políticas públicas e garantir direitos há séculos negados
AFundação Cultural Palmares (FCP) e a Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (ANATER/MDA) iniciaram uma ação coordenada no Maranhão com o objetivo de fortalecer os direitos das comunidades quilombolas e acelerar os processos de certificação no estado.
A iniciativa concentra esforços no território Guarimã, marcado por situações alarmantes de vulnerabilidade: cercas que isolam famílias inteiras, contaminação de nascentes, avanço do desmatamento e ameaças recorrentes contra lideranças comunitárias. Entre os dias 8 e 10 de abril, uma visita técnica conjunta percorreu as comunidades de Guarimã e Babaçual dos Pretos. A missão teve como foco o mapeamento territorial e o aprofundamento do diálogo com as populações locais, abrindo caminhos para uma escuta qualificada e ações concretas.
Um dos episódios mais simbólicos foi o de Pai Antônio, pai de santo da comunidade, que teve o acesso ao rio bloqueado e foi impedido de reformar sua casa de barro por um fazendeiro da região. A denúncia revela não apenas um conflito fundiário, mas uma grave violação da liberdade religiosa, em um território onde a fé e a ancestralidade são parte indissociável da vida coletiva.
“Com o apoio e a articulação da ANATER, estivemos presencialmente no território para orientar o processo de certificação. A expectativa é que, nos próximos dias, todas as comunidades desses dois territórios estejam oficialmente certificadas pela Fundação Cultural Palmares. Com a certidão em mãos, abrem-se caminhos para o acesso pleno às políticas públicas às quais essas populações têm legítimo direito”, destacou Alan Matos, chefe de Projeto do Departamento de Proteção ao Patrimônio Afro-Brasileiro (DPA) da Fundação Cultural Palmares.

Tudo começa na Palmares
A certificação é o primeiro passo para a justiça territorial, e a Fundação Cultural Palmares é o órgão responsável pela emissão da Certidão de Autodefinição Quilombola, documento essencial para o acesso à titulação da terra, à cidadania plena e a políticas públicas específicas. A certificação reconhece formalmente a existência de comunidades quilombolas com base na autoidentificação, princípio assegurado pela Convenção 169 da OIT.
No território de Guarimã, a FCP também se comprometeu a retificar a certidão original, incluindo comunidades que foram excluídas inicialmente do processo. A regularização fundiária, por sua vez, segue como responsabilidade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que atua na etapa posterior da titulação.
Campanha Acelera Certificação em andamento
Desde o inicio de 2025, a Fundação Palmares vem intensificando a campanha nacional Acelera Certificação Quilombola, com o objetivo de ampliar o reconhecimento formal das mais de 8 mil comunidades quilombolas do país. Até março, 3.915 comunidades já haviam sido certificadas — número ainda distante da totalidade, mas em expansão.

Você sabia que o primeiro Censo Quilombola foi lançado na Fundação Cultural Palmares?
No último dia 27 de março, a sede da Fundação Cultural Palmares foi palco do evento “O Brasil Quilombola”, que marcou o lançamento da publicação oficial do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com os dados do primeiro Censo da População Quilombola. O momento foi descrito por lideranças como histórico. Pela primeira vez, o Brasil sabe quantos são, onde vivem e em que condições estão os povos quilombolas.
“Exu matou um pássaro ontem com a pedra que só jogou hoje” — a frase trazida por Júnia Quiroga, do UNFPA, ilustrou o longo processo de luta e invisibilidade que antecedeu a conquista desses dados.

Um retrato inédito
Segundo o levantamento, 1.330.186 pessoas quilombolas vivem em 1.700 municípios brasileiros, representando 0,66% da população total. A maioria vive no Nordeste (68,14%), sendo a Bahia (397 mil pessoas) e o Maranhão (269 mil pessoas) os estados com maior população quilombola.
Apesar disso, apenas 167 mil pessoas vivem em territórios oficialmente delimitados, enquanto mais de 1,16 milhãoresidem fora dessas áreas — dado que escancara a urgência da certificação e da titulação.
O Censo revelou também:
- Taxa de analfabetismo de 19% entre pessoas quilombolas com 15 anos ou mais (contra 7% da média nacional);
- 90% convivem com algum tipo de precariedade no saneamento básico;
- Apenas 66,7% têm acesso à água encanada dentro de casa;
- 18,2% não têm qualquer acesso à água encanada;
- Quase 25% não têm banheiro exclusivo em casa.

Política com base em dados
Para João Jorge Rodrigues, presidente da Fundação Cultural Palmares, o Censo vai além de uma coleta de informações — trata-se de uma reparação histórica e um instrumento de poder político e institucional. “Agora temos números que falam por si. Essa população existe, resiste e precisa de políticas que dialoguem com suas realidades”, afirmou.
O coordenador da CONAQ, Arilson Ventura, destacou que o Censo fortalece a luta por acesso à terra, saúde, educação e justiça. “É um instrumento para dizer ao Estado: estamos aqui. A resistência de Zumbi continua”, disse.
Certificação é dignidade. Censo é reconhecimento. Políticas públicas são direito. Com dados, escuta ativa e articulação concreta, o Brasil caminha rumo à reparação da sua dívida histórica com os povos quilombolas.