No dia 25 de dezembro, quando, cedo, li a notícia do feminicídio da Juíza Viviane do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, fiquei estarrecida com o grau da violência cometido no assassinato daquela mulher e mãe, e, ao mesmo tempo, com a infame violência (emocional) do pai contra as filhas, ao cometer o crime na frente delas. Podemos imaginar o quanto essas meninas ficaram emocionalmente destruídas, vendo a mãe ser esfaqueada pelo pai? Qual o peso que tudo isso terá em suas vidas de crianças e mulheres adultas? Esses pensamentos me fizeram refletir um pouco sobre a sociedade complexa em que vivemos.
MUJICA, ex-guerrilheiro e ex-presidente do Uruguai, falou há tempos, num documentário, no canal Curta, sobre o equilíbrio extremamente frágil (provisório) que temos nas sociedades complexas do mundo atual. A realidade é complexa porque aquilo que vemos ou vivemos, resulta do cruzamento de inúmeros fatores, com diferentes origens e de diferentes dimensões. Tudo acontece com incrível velocidade. Essa nova realidade, esse novo ambiente, não poderia deixar de causar profundos impactos na forma de agir, pensar e reagir de indivíduos e de grupos. Sobre seus efeitos e consequências, ainda sabemos muito bem como lidar com eles. Quais seriam as saídas mais adequadas para a solução dos problemas que surgem nessa espécie de caos, revelado pela complexidade do real?
Os teóricos e estudiosos do pensamento complexo dizem que a solução deve ser pensada também de forma complexa, ou seja, envolvendo, simultaneamente, diferentes variáveis, atores, movimentos, áreas do conhecimento, políticas públicas e práticas sociais. No caso do feminicídio, por exemplo, seu combate ou superação não pode ser pensado, por exemplo, só com punição para o assassino. Ou por outro lado, em armar as mulheres para se defenderem do agressor. A punição é fundamental, mas não basta. Dar armas para as mulheres ameaçadas tem uma série de nuances no desdobramento da medida, que poderiam nos levar a um caminho que choca-se contra valores caros à luta das mulheres.
Com certeza a lei Maria da Penha, de 2006, que se constitui num marco histórico na luta feminista contra a violência, depois de 14 anos, precisa ser atualizada, aperfeiçoada e ampliada, pois a realidade mudou, drasticamente, e pra pior, nos últimos anos. A estrutura que a lei prevê para proteção da mulher, encontra-se hoje, numa situação muito precária. Equipamentos básicos como a delegacia da mulher – não existem na grande maioria dos municípios brasileiros. As políticas que a lei prevê, de pessoal adequadamente formado, instrumentos e equipamentos, como a Casa da Mulher Brasileira, com o corte de verbas, estão ameaçadas ou reduzidas ao mínimo. É preciso, ainda, pensar em politicas para homens agressivos (e para a sociedade em geral): campanhas permanentes contra a violência à mulher; campanhas ou iniciativas que promovam a responsabilidade compartilhada, entre homens e mulheres, na educação dos filhos e filhas, tanto institucional quanto familiar.
Para o ano de 2021, as previsões são de aprofundamento da crise econômica, de nova onda da covid, com aumento do desemprego e aprofundamento da pobreza e da fome. Nesse cenário (desolador), coloca-se o importante desafio da nossa criatividade na busca de soluções, em especial, por meio de projetos para a geração de emprego e renda ALTERNATIVOS. Projetos voltados para as mulheres em situação de riscos e que garantam sua independência financeira em relação ao agressor. Projetos que, situando-se fora de uma lógica capitalista, de competição, de lucro, de acumulação, priorizem o cooperativismo, a solidariedade, agricultura familiar, a preservação ambiental, a cultura dos povos tradicionais, e o trabalho realizado pelas mulheres.
A atenção à saúde física e mental deve ser também uma pauta prioritária, considerando a vulnerabilidade das mulheres que estão sob ameaça. Uma questão central deve ser o estímulo, promoção e criação de condições para uma discussão pública permanente sobre os valores e condutas que estão na base de relações mais humanas, mais justas e promotoras da emancipação dos seres humanos e, muito especialmente, na emancipação das mulheres.
O problema da violência é muito abrangente e, podem existir sérias dificuldades para avançar em propostas mais totalizadoras, que articulem as principais políticas de forma efetiva, numa curto espaço de tempo. Por isso é muito importante a convergência de esforços dos grupos, atores, ongs, secretarias de mulheres dos partidos e da CUT e de outras centrais, da Comissão da Mulher da OAB e outras/outros que queiram se somar a esse movimento. O objetivo é encontrar saídas que acabem com o feminicídio, ou que pelo menos o minimizem fortemente. Precisamos contar com o envolvimento ativo da população no debate e nas iniciativas que surgirem.
Finalmente grupos de homens que estejam incomodados, inquietos com o grau de violência existente nas relações, e com as masculinidades tóxicas que vigoram em nossa sociedade, devem ser mobilizados e convidados a se somarem e serem uma voz ativa no debate.
Neste momento, este é um primeiro passo, um novo acordar para a necessidade urgente de dar uma resposta concreta e, tanto quanto possível, imediata para a violência do feminicídio. Não teremos com este passo grandes condições de resolver todos os problemas, mas, se o debate se expandir e ganhar as ruas amplamente, haverá o desmascaramento inicial daquilo que dizem não existir com a gravidade que denunciamos: a matança de mulheres, pelo simples fato de serem mulheres.
Os comportamentos conservadores, machistas e misóginos, discriminadores, arraigados nas instituições sociais e na própria sociedade, causadores da violência de gênero e o feminicídio, não mudam de uma hora para outra. Em tempos de relativa paz, eles permanecem de forma latente, nas estruturas, nas práticas e instituições da sociedade. Em tempos de governos comprometidos com a justiça social e com a igualdade de direitos entre homens e mulheres, manifestações misóginas e violentas, são administradas, controladas, mediadas por estratégias e políticas voltadas para a valorização das pessoas na sua diversidade, para uma distribuição mais justa e igualitária dos bens sociais, sobretudo para os mais pobres e vulneráveis. Nesses governos há garantia de direitos adquiridos e conquista de novos direitos.
Lamentavelmente, nos dias atuais, no entanto, observamos uma erupção de valores e condutas negativas, e do pior espectro que existe! Vivemos a volta a um tempo de atraso, de fascismo e misoginia que julgávamos ter enterrado para sempre. Ledo engano! Discursos, posturas violentas, misóginas, profundamente regressivas, antipovo, surgem da excrescência que comanda hoje o país, sob os auspícios do judiciário, do parlamento e das religiões fundamentalistas.
E temos a produção de um discurso raso, chulo, muitas vezes, desprovido de quaisquer valores de cidadania que sejam dignos dos seres humanos. Um discurso que estimula comportamentos e atitudes violentas e discriminatórias, na contramão de tudo que possibilita a construção de uma cultura de paz, harmonia, solidariedade e amizade entre indivíduos, entre grupos e gerações; entre mulheres e homens, tão caros ao feminismo e à emancipação dos seres humanos. É contra esses retrocessos que estamos sendo convocados e convocadas, para lutar, com muita criatividade, disposição e esperança.
Na véspera de Natal, foi morta uma juíza, uma mulher que representava a lei, que era a voz da lei em nosso país, a autoridade de que tanto precisam as mulheres para conter a violência do feminicídio. Mas o que ocorreu com a juíza vem nos lembrar, infelizmente, que nenhuma de nós pode se sentir segura numa sociedade, onde perdurem a falta de condições para o efetivo funcionamento de uma rede de proteção. Morreu uma “comandante”, nessa guerra do enfrentamento à violência e às ilicitudes. E hoje? E no futuro?
Quantos milhares de “soldadas rasas” ainda estarão condenadas a morrer, na mesma condição, por falta de apoio e proteção? A capacidade de transformar nossa indignação em ações práticas é a nossa arma!