Em março de 2020, o médico sanitarista, doutor em epidemiologia, Eduardo Azeredo Costa concedeu entrevista para o QTMD? e disse enfaticamente: “O desastre Bolsonaro é muito maior do que o coronavírus”. No último dia 09 de setembro, um ano e meio depois, em nova entrevista a este site, ele analisa que ter Bolsonaro na presidência “é um contrabônus extra”, que favorece a disseminação do vírus, porém afirma que, refletindo sobre o assunto ao longo deste tempo, chegou à conclusão de que “o coronavírus está se lixando para Bolsonaro”. Assim como está se lixando para você que lê este texto, para quem o escreve e para o próprio entrevistado.
Arrogância da humanidade
“Acho importante dizer o seguinte: nós estamos numa posição arrogante enquanto humanidade, eu diria, nesta pandemia. Como se fosse o nosso direito de sobreviver e que não importasse o resto. Arrogante acharmos que podemos fazer isso, quando, na verdade, estamos sendo derrotados por uma estrutura biológica mais simples do que a nossa e, por isso mesmo, mais plástica. Ela consegue se flexibilizar e encontrar respostas. Esse bichinho é muito malandro. Está nos dando um banho”, sintetiza Azeredo Costa. Assista a este trecho da entrevista no vídeo a seguir:
Máquina de propaganda
Com a experiência de quem trabalhou na Organização Mundial de Saúde na época da erradicação da varíola e por 30 anos na Fiocruz, tendo sido diretor de Farmanguinhos, Costa critica severamente a “máquina de propaganda da indústria farmacêutica”, que, para ele, tem favorecido a Pfizer e desacreditado outras vacinas, como a CoronaVac. Ele sustenta que a vacina oriunda da China e produzida no Brasil pelo Instituto Butantan “é boa, com uma estrutura antiga, muito mais segura”. O problema, ele brinca, é que a CoronaVac “dá tão pouca reação que há quem a tenha apelidado de água benta. Talvez com água benta Deus ajude mais”.
Mistura de vacinas: uma má prática de saúde pública
Nesta entrevista, Costa fala ainda sobre a terceira dose da vacina, comentando a crítica feita pela Organização Mundial de Saúde que apontou questões éticas porque muita gente no mundo ainda não tomou nem a primeira dose, especialmente nos países mais pobres. O epidemiologista concorda avaliando que, nesse cenário, “do ponto de vista da equidade, é uma injustiça que se esteja aumentando mais a proteção de quem já tomou duas doses”. Porém, ele vê base científica para esta dose de reforço: “como há evidências de que vai caindo a imunidade, a dose de reforço é importante para mantê-la alta. É importante não haver mais gente transmitindo”, defende.
No entanto, ele se diz contrário à mistura de vacinas. “Essa coisa da ‘misturança’ é o seguinte: importaram 200 milhões de doses da Pfizer e querem de todo jeito fazer alguma coisa para usá-la. (…) A maioria da população brasileira mais velha tomou CoronaVac, porque no começo só tinha ela. Então, tomá-la como reforço, já tendo funcionado, é bom, dá segurança. Misturar não é tão grave numa situação em que não haja outra opção, ou numa situação particular ligada a reações adversas, mas não é uma boa prática de saúde pública planejá-la fora destas situações especiais”, assegura o sanitarista. Sobre a variante Delta, que se espalhou inicialmente pelo Rio de Janeiro, ele alerta que as crianças têm maior potencial de transmiti-la e que precisam ser vacinadas. “A única vacina que dá para vacinar crianças é a CoronaVac. Outras vacinas provocariam muitas reações em crianças sem o mesmo benefício individual”, garante.
Medidas futuras: não dá para imitar o Ibrahim Sued
Falando sobre as medidas de saúde pública que possivelmente precisarão permanecer mesmo após a pandemia, Costa recorreu a uma frase de um famoso colunista social para apontar o que não deve ser feito: “No caso do coronavírus, que em pouco tempo pegou tanta gente, é preciso manter a vigilância epidemiológica e a informação para ação imediata. Não é como o Ibrahim Sued dizia: ‘agora que vocês estão bem informadinhas, a demain’. Não, é informação para a ação. Não é só comunicar. É comunicar para poder implementar medidas”, conclui.
A seguir, as palavras do entrevistado em detalhes:
Ana Helena Tavares: Conversamos no início da pandemia e você via o Bolsonaro como pior do que o Coronavírus. Como vê isso hoje?
Eduardo Azeredo Costa: Esse páreo ficou complicado. Porque cada um com suas particularidades. Nós temos esse marco de ter conversado sobre a pandemia lá no começo. No início, eu achava que não ia durar tanto tempo o caos. Achava que ia ter uma resolução em tempo mais curto. Temos um belo exército de agentes de saúde no Brasil inteiro que poderiam ter informado e ajudado a população. Mas o Bolsonaro, pior do que o vírus, assumiu o lugar do desastre. Mandou através do Mandetta, que a atenção primária ficasse em casa. No ano passado, quase tudo foi muito mal conduzido. Até que veio a vacina e ajudou a colocar um norte mais visível, atropelando até a ira de bolsonarista contra medidas de combate à pandemia.
Bolsonaro fez tudo ao contrário do que deveria ter sido feito e nós todos vimos o resultado. O famoso bate-cabeça dos estados, desarticulando todo um sistema que é um pouco complexo de se mexer. É preciso ter uma autoridade coordenando centralmente as várias partes. Ela não existindo, o que a gente viu foi isso: os estados tentando resolver, descoordenados. Conseguiram alguns se articular e até tentar fazer aquisição direta de vacinas, que a ANVISA não aceitou, porque está bolsonarista na essência.
Então, o que nós vimos foram esforços não frutificarem (por parte dos estados), inclusive em relação à ativação de uma vigilância epidemiológica, porque vários municípios não os acompanhavam. Porque foi cada um por si, trabalhando na ausência de uma liderança nacional, dependendo do projeto eleitoral e crenças sanitárias de cada governador e de cada um dos prefeitos. Enfim, cada um tomou as medidas que tomou de acordo com seu entendimento das necessidades políticas e sanitárias locais.
O coronavírus está se lixando para o Bolsonaro. Ele se aproveita do Bolsonaro. Está se lixando para mim e para todo mundo. Ele tem a sua estratégia de sobrevivência. A cada passo que a gente dá, ele procura outro para sobreviver. Venho fazendo essa reflexão e acho importante dizer o seguinte: nós estamos numa posição arrogante enquanto humanidade, eu diria, nesta pandemia. Como se fosse o nosso direito de sobreviver e que não importasse o resto. Arrogante acharmos que podemos fazer isso, quando, na verdade, estamos sendo derrotados por uma estrutura biológica mais simples do que a nossa e, por isso mesmo, mais plástica. Ela consegue se flexibilizar e encontrar respostas. Esse bichinho é muito malandro. Está nos dando um banho.
É verdade que Bolsonaro atrapalha, mas também não podemos ser cegos. Na maioria dos países, com outros líderes, alguns deles muito mais positivos do que aqui, também as coisas estavam acontecendo mal. Isso é uma coisa que não dá para esconder. Nós tínhamos o problema do nosso enfrentamento, mas outros países que não tinham os mesmos problemas também sofreram bastante. Então, nós tínhamos que ver que não adiantava só focar na questão da gestão Bolsonaro. Tínhamos que mobilizar o maior número de secretarias e de pessoas para o combate. Porque, quando a gente acha que só a gente por direito vai sobreviver e outras não, eu chamei de arrogância, mas é também uma negação da realidade. O cara pensa: sou muito poderoso! E nega a realidade.
Olha o banho que ele (o coronavírus) está dando agora, por exemplo, naquela “super” vacina da Pfizer. Vemos os EUA bombando com a doença. Israel, que foi o campo de prova da Pfizer, fez tudo direitinho, tem todos os recursos, sem nada que atrapalhe, está lá às voltas com o vírus. As vitórias são fugazes, aí começa-se a achar que as vacinas dão uma imunidade de curta duração, etc. Então, você vê que os problemas estão em todos os cantos e temos que aprender com eles. Agora, claro que é um contra bônus extra ter um Bolsonaro na presidência.
AHT: Você tem muita experiência com vacinas. Como tem visto o tratamento dado às diferentes vacinas? Pode-se dizer que alguma é melhor ou pior do que a outra?
Eduardo Azeredo Costa: A questão é a seguinte: nós temos uma máquina de propaganda da indústria farmacêutica que detém a propriedade da Pfizer, que desenvolveu o produto (vacina) e trabalhou para vende-lo. A vacina da Pfizer é uma vacina que todos tinham que ter muita precaução por usar uma tecnologia muito nova, sobre a qual não se tinha muita segurança. Eu sou uma pessoa de mais precaução quando se trata de uso em larga escala na população. Mas ela passou (nos testes).
E temos agora uma discussão, talvez de pouca relevância, que mostra os interesses do Bolsonaro contra a CoronaVac. Por quê? Porque o governo comprou 200 milhões de doses da Pfizer e não têm como em dizer que isso é não bom. Ótimo para a Pfizer que tem muito poder, vive munindo os jornais e toda a imprensa para dar boas notícias. Já a CoronaVac só tem o poder do estado de São Paulo, porque os chineses não têm possibilidades de defendê-la aqui. Mas é uma vacina boa, com uma estrutura antiga de produzir vacinas, muito mais segura. É uma vacina que pode ser aplicada em crianças, claramente, pelos estudos que já estão feitos.
Então, sou uma pessoa que, do ponto de vista técnico, diria que a CoronaVac responde mais às necessidades do Brasil do que a Pfizer. Mas a vacina da CoronaVac dá tão pouca reação que há quem a tenha apelidado de água benta. Talvez com água benta Deus ajude mais, não sei.
AHT: A OMS fez duras críticas ao uso de uma terceira dose ou dose de reforço, levantando questões éticas. Como você vê isso do ponto de vista ético e científico?
Eduardo Azeredo Costa: Nós temos dois problemas diferentes. Do ponto de vista mundial, é verdade que muita gente não tomou dose nenhuma. E usar uma terceira dose consome, porque a produção, embora já seja muito grande, ainda não dá para todo mundo. Então, do ponto de vista da equidade é uma injustiça que se esteja aumentando mais a proteção de quem já tomou duas doses. Estes estão sendo protegidos, mas não está protegendo todo mundo. Seria um problema ético nesse sentido. Agora, do ponto de vista científico, é interessante citar que essa decisão começou em Israel porque começaram a observar que, possivelmente, a imunidade estava caindo com o tempo.
E, num país de população grande (como no Brasil), mesmo uma vacina que tenha 99% de eficácia não vai proteger uma parcela grande da população. 1% de 200 milhões é 2 milhões. Então, é muita gente adoecendo e, como há evidências de que vai caindo a imunidade, a dose de reforço é importante para manter. É importante até para o mundo inteiro para não haver mais gente transmitindo. Aqui, há um fenômeno meio surpreendente. O Rio de Janeiro foi onde teve essa invasão e disseminação da (variante) Delta. Nós estamos acompanhando um pouco isso aqui e talvez possa lembrar um pouco o começo da pandemia, que no começa (a doença) pega nas classes médias, porque são os que viajam para o exterior. Mas nos outros estados não está acontecendo assim.
AHT: O que você acha da recomendação de misturar vacinas na terceira dose? Há quem diga que a CoronaVac não poderia ser usada nesse reforço. É verdade?
Eduardo Azeredo Costa: Essa história de que a Coronavac não pode ser usada como dose de reforço é bobagem. A Coronavac é muito boa para reforço. Achei muito boa a decisão de São Paulo de usar, especialmente nos mais velhos. Primeiro porque eles não costumam ter muitas reações adversas, mas as poucas que têm costumam ser mais graves neles. A maioria da população brasileira mais velha tomou CoronaVac, porque no começo só tinha CoronaVac. Então, tomar ela como reforço, já tendo funcionado, é bom porque dá segurança.
Misturar não é tão grave numa situação em que não haja outra opção, ou que uma reação adversa anterior acautele justificando o uso de uma diferente, mas não é uma boa prática de saúde pública. Essa coisa da “misturança” é o seguinte: importaram 200 milhões de doses da Pfizer e querem de todo jeito fazer alguma coisa para usar a Pfizer. É uma má prática, porque é fazer algo com um risco invisível sem necessidade. Pode até ser que não exista o risco, mas se há chance de existir, para que fazer? Quem já passou pela experiência com uma vacina deveria voltar a tomá-la. Eu tenderia a manter a mesma vacina tomada em todos os grupos de idade. Isso depende da disponibilidade. Mas essa é uma boa prática de saúde pública. Misturar vacinas é uma má prática de saúde pública e digo isso com uma segurança absoluta, porque dilui responsabilidades dos produtores, aliás o que a big pharma quis desde o início da pandemia e está impondo.
Agora, há um grupo que a gente tem que olhar. São as crianças. Essa Delta tem uma particularidade, não de tornar-se grave nas crianças, mas fazer-se mais aberta e transmissível nessa faixa etária. Todos os estudos estão mostrando isso: as crianças têm um papel na transmissão (da Delta) que era praticamente nulo antes (nas outras variantes). Ou seja, nós temos que vacinar as crianças. E a única vacina que dá para vacinar crianças é a CoronaVac. Outras vacinas provocariam muitas reações em crianças, com baixíssimo risco de adoecer gravemente individual. Não é legal.
AHT: Pensando num cenário futuro de pós-pandemia, quais seriam as medidas necessárias de serem mantidas?
Eduardo Azeredo Costa: A última coisa é o lockdown. Eu nem sei direito o que nós chamamos no Brasil de lockdown. Chega a ser engraçado isso. Decretam o lockdown para tudo e todos. Para tudo. Fecha as portas, todo mundo se tranca em casa, coisas desse tipo. Eu sempre digo que se não houvesse gente que nunca parou, como quem produz comida, nós estávamos todos mortos de fome a essa altura. Então, não pode ser algo indiscriminado, mas seletivo segundo os riscos e de acordo com os serviços que cada um presta. Profissionais de saúde, por exemplo, nunca puderam parar, mas continuaram tendo riscos. Não pode ser uma coisa assim: chega o lockdown, todo mundo para e cada estado e município interpreta de um jeito. Isso não tem o mínimo de racionalidade. Em vez de um isolamento geral, tem que focar no local onde a situação está ocorrendo.
Agora, as outras coisas a gente sabe como é, porque temos essa experiência. Quase todas as doenças pandêmicas ficam circulando em baixos níveis. É difícil o desaparecimento total. Mesmo no caso da varíola, foi preciso ficar alguns anos vacinando, depois parou. No caso do coronavírus, que em pouco tempo pegou tanta gente, é preciso manter a vigilância epidemiológica e a informação para ação imediata. Não é como o Ibrahim Sued dizia: ‘agora que vocês estão bem informadinhas, a demain’. Não, é uma informação para a ação. Não é só comunicar. É comunicar para poder implementar medidas. As duas pernas têm que andar juntas. Uma equipe preparada para agir assim que haja a informação de um caso suspeito. E vai lá, vacina todos ao redor, faz testagem e tal. Porque, o que vai acontecer? Daqui a dois ou três anos vamos estar com a população adulta vacinada e vão nascer crianças que não estão vacinadas. Nós vamos ter que manter uma vacinação infantil o quanto antes. Para adultos, tem certas doenças, como a da gripe, que necessitam de uma vacinação anual. Pode ser que a Covid também. Precisa mais tempo para analisar isso.
AHT: A pandemia envolve também questões psicológicas graves. Como sanitarista, qual sua avaliação disso?
Eduardo Azeredo Costa: Acho que tem gente que exagera e é ruim para a cabeça. As pessoas não estão bem por diversas razões, inclusive pela questão econômica, mas também porque estão com pouca conexão umas com as outras. Isso é fundamental para a humanidade. A gente não se dá bem sozinho, em qualquer coisa.
Infelizmente, o Brasil não trabalhou com vigilância epidemiológica, não trabalhou com inteligência e faz esses lockdown indiscriminados. Aí fica todo mundo apavorado sem saber o que fazer. Não saiam de casa! Não saiam de casa! Um absurdo. Uma caminhada num ambiente aberto, como a Lagoa aqui no Rio, só faz bem. O sol ajuda muito.
Os ambientes confinados é que são perigosos. Todo mundo juntinho à noite numa boate é problema. Igrejas, que são ambientes fechados, também. Ou ficar muito perto de pessoas que você não conhece. O que é preciso é que as informações sejam mais dirigidas (localizadas) e não ficar assustando todo mundo, como se ninguém pudesse relaxar nunca. Não dá. Vamos, pelo menos, relaxar por partes.
Eu acho que lidamos muito mal com tudo isso. Porque parte da mídia, que depende de propaganda e do poder econômico, para chamar atenção, precisa criar o pavor. Isso é exagero e o pior é que não é eficiente.
(*) Ana Helena Tavares, jornalista, editora do QTMD?
AHT/EAC