Retrocesso neoliberal na América Latina: desafios históricos e atuais na governança, com destaque para o Equador. Por Pedro Pinho e Felipe Maruf
O século 20 fez surgir ou ressuscitar poderes que levaram boa parte do mundo a guerras por todos seus últimos 100 anos. Pode-se, com a falha comum a todas generalizações, afirmar que o inconformismo das finanças, sobretudo europeias e aristocráticas, derrotadas pelo industrialismo, que levara os Estados Unidos da América (EUA) à condição de potência bélica e econômica, promoveu motivos para quebrar a estrutura e a ordem do mundo republicano, politicamente independente.
Duas condições mantinham as finanças, mesmo parcialmente, no poder: a sucessão hereditária, seja monárquica, seja de mesma facção política, patrimonial ou étnica; e a concentração de privilégios exclusivos para as operações financeiras.
Apresentaríamos, como sempre, um caso brasileiro. Mas, considerando as maiores emoções que despertam nossos atores, optamos pelo recente caso no Equador para exemplificar o que denominamos “retrocesso neoliberal”. E, assim, teremos também um exemplo das governanças que participaram das lutas pela independência na América Latina.
Durante o século 19, as colônias espanholas nas Américas lutaram por suas independências políticas. Ao mesmo tempo, os EUA, buscavam consolidar sua Independência (1776), expandiram o território das 13 Colônias, com o incentivo da ocupação de terras denominado “Destino Manifesto” (1845), e inibindo a presença europeia, com a Doutrina Monroe (1823).
Na prática, a Doutrina Monroe, como assinala José Gregorio Linares (Bolivarianismo versus Monroísmo, Centro de Estudios Simón Bolívar, Caracas, 2020), funcionou como o contraponto estadunidense ao projeto do precursor venezuelano Francisco de Miranda (1750-1816), que entendia ser a independência da América Espanhola “inseparável da ideia da integração”.
Recordemos os quatro vice-reinados que a Espanha organizara para administrar o imenso território da América do Norte à Patagônia. Mais ao norte, foi constituído o Vice-reinado da Nova Espanha, que avançava pelo atual EUA (Arizona, Califórnia, Colorado, Nevada, Novo México e Utah) e se estendia desde o México até a Costa Rica. Esta imensa área estadunidense de 1.811.981,17 km², quase o dobro das Treze Colônias (970.306,51 km²), foi retirada da Espanha e do México pelo “Destino Manifesto”. Poder-se-ia incluir, nesta apropriação por guerras e fraudes, a Capitania Geral da Flórida (170.312 km²).
Oscar Efren Reyes (1896-1966), historiador e professor equatoriano, assim se expressa sobre a chegada dos espanhóis: “As grandes massas indígenas, os primitivos ocupantes do território equatoriano, serão separados para sempre: a maioria se tornará simples serviçal ou incluída na miscigenação com os invasores; alguns se reconcentrarão em áreas quase inacessíveis, e outros fugirão, em ondas aterrorizadas ou rebeldes, para as profundezas das selvas, para continuarem selvagens” (tradução livre de Breve Historia del Ecuador, 4ª edição aumentada, reimpressão pela Municipalidad de Quito, 1950). A descrição de Reyes se aplica, grosso modo, por toda a América Ibérica.
Com a independência do México (1821), a libertação da Nova Espanha uniu, em 1823, na União das Províncias da América Central, as futuras Guatemala, Honduras, El Salvador, Nicarágua e Costa Rica. Situação semelhante ocorria com as Províncias Unidas de Nova Granada, que teve a primeira independência em 1811 e sofreu, com as intrigas, subornos e vaidades, o estilhaçamento da Venezuela (1814), Equador (1830), e a separação, articulada pelos EUA, do Panamá da Colômbia, que ocorreu em 1903.
Imagine-se em que América se viveria hoje se, ao invés de 26 países, houvesse, além do Canadá, ainda uma colônia, apenas seis países, todos com territórios que lhes supririam a maior parcela ou quase integralmente as necessidades de recursos agropecuários e minerais: os EUA, o México, a União das Províncias da América Central, o Peru (substituindo o território do Vice-reino do Peru), o Rio da Prata (Argentina, Paraguai e Uruguai) e o Brasil. Um mundo de Estados mais rico e, possivelmente, mais pacífico.
Da independência à recolonização
O poder sempre procura ganhar as mentes, a compreensão que as pessoas devam ter dos fatos de modo a não lhe causar inconvenientes. A religião, desde seus surgimentos, serviu magnificamente para este objetivo: Deus o quer, seja Deus um espírito, um ser vivo, inanimado ou um soberano.
Esquerda, direita, todas ideologias buscam a conquista de corações e mentes. Em termos coletivos, as cabeças mais protegidas são dos lavradores, que só sobrevivem com suas colheitas, e isso exige atenção às realidades do clima, do vento e da chuva, do solo e da água. Poucos veem as realidades com tanta clareza. E, talvez por isso, a China, onde as pessoas, que se declaram sem religião, ostentam o elevado percentual de 74%, e o budismo, que é menos uma religião do que um comportamento existencial, encontre 18% de seguidores, elevando a percentagem de não teístas para 92%. E o país se orgulha de ser, desde tempos imemoriais, uma terra de lavradores.
Oscar Reyes aponta, entre os grupos mais influentes ao tempo que se articulava a independência do Equador, exatamente os não independentistas: clérigos, uma aristocracia hispano-criollo e aqueles que, vendo os avanços mundiais, queriam se subordinar à Inglaterra ou aos EUA.
Os que haviam buscado estudar, inclusive na Espanha, esperando ocupar cargos na administração colonial, trabalhar por seu país, ficaram frustrados, como demonstra Jacinto Jijon y Caamaño (“Influencia de Quito en la emancipación del continente”, Boletín de la Academia Nacional de Historia, Ecuador, 1924, volume VIII).
Em 1810, por toda América Espanhola fervia a revolução pela independência, desde Nova Espanha até Rio da Prata. No entanto, as perspectivas locais se sobrepunham ao projeto integracionista de Francisco de Miranda. Este, na descrição de John Adams (carta a James Lloyd, em 6/3/1815), afirma que Miranda “cruzou, se não todos, ao menos grande número de estados, foi apresentado a Washington e seus assessores, secretários, generais, coronéis e suas famílias”. Mas a própria elite estadunidense, que perseguia um grande território, não desejava outro nas Américas.
José Gregorio Linares, na obra citada, apresenta dados históricos que mostram a verdadeira sabotagem que os EUA praticaram nos próprios EUA, na Europa, na Venezuela e na Nova Granada para impedir que o ideal de Miranda se concretizasse pela ação de Bolívar. O secretário de Estado, John Quincy Adams, como um exemplo, armou duas embarcações de guerra para combater no Orenoco as forças sob Bolívar, em março de 1819. Enquanto emissários estadunidenses preparavam o ambiente psicológico e material para o insucesso dos “indígenas pobres, miseráveis e ignorantes ao extremo”.
Apostando nas divergências personalistas, os processos de emancipação mesmo dentro do Equador seguiram caminhos distintos em Guayaquil e Quito. A Constituição de 1830, assim inicia: “Art. 1º – Os Departamentos de Azuay, Guayacas e Quito se unem formando um só corpo independente com nome de Estado do Equador”.
Em 22 de setembro de 1830, inicia o governo do primeiro presidente equatoriano, Juan José Flores, logo sucedido por uma ditadura militar. E assim, entre presidentes civis e ditaduras militares, se desenrola a história do Equador até Eloy Alfaro Delgado, “El Viejo Luchador”, que assume em 1895, governa por duas vezes, até ser assassinado, com seguidores, em janeiro de 1912, meses após sua deposição, na denominada Fogueira Bárbara, no Parque “El Ejido”, em Quito.
A governança segue o padrão desejado pela elite, até eclodir o movimento de 9 de julho de 1925, dando origem à Ditadura Cívico Militar com o programa que segue:
- a) transformação política que assegure a democracia no país, combatendo o caudilhismo e as oligarquias tradicionais;
- b) revisão dos sistema bancários e fiscais, e criação do Banco Central; e
- c) atenção para os problemas sociais, atendendo principalmente as classes menos favorecidas, com novo critério político.
A ação se concentrou na área financeira, mudando a moeda, criando outros organismos estatais, no sentido de transferir para o Estado ações até então privadas. Com a Constituição de 1929, o espanhol constitui o único idioma nacional, as propriedades agrárias passam a ter limites, o trabalho a gozar de proteção legal; no entanto, a força ganha pelo Poder Legislativo logo transforma estes avanços socioeconômicos em anarquia, que conduz à Guerra Civil de 1932.
A situação volta a gerar incertezas com ditaduras civis e militares, entre presidentes eleitos, até que em 1972, militares nacionalistas tomam o poder e realizam reformas profundas como a nacionalização do petróleo, a maior riqueza equatoriana, programa de industrialização para desenvolver a tecnologia e soberania do País, a reforma agrária e maior distribuição de renda para incentivar o consumo.
As forças imperialistas aliaram-se aos tradicionais beneficiários internos da riqueza nacional e promoveram o fim do triunvirato militar em agosto de 1979.
Algumas conquistas nacionalistas e populares foram mantidas durante a década de 1980, mas a invasão das finanças nos governos ocidentais, com as desregulações e a imposição do Consenso de Washington, fez reverter a situação equatoriana com domínio cada vez maior das finanças e da elite internacionalista. Os mesmos que impediram a integração hispano-americana, assassinaram Alfaro, destituíram o triunvirato de 1972 e trabalham para sujeição nacional ao exterior.
O retrocesso neoliberal
Neste curto resumo da história do Equador, vê-se o que ocorreu e ocorre com a América Latina. O Equador poderia ser substituído pelo Peru, pela Colômbia, pelo Chile e todos demais. Uma elite de herdeiros da colônia se julgam proprietários do País para o explorar em seu proveito. E encontram o apoio do exterior, desde 1980, nas finanças apátridas que têm os mesmos procedimentos do século 19: apenas o comércio, financiado pelo capital financeiro, o próprio capital financeiro e a propriedade das terras exercem o poder. Todas as demais fontes de renda, principalmente do trabalho, lhes são submetidas.
A escolha do Equador deveu-se à nova fase de dominação das finanças apátridas que, mais cedo mais tarde, estará afligindo todos nós: o domínio do poder nacional pelo crime.
O Equador tem, hoje, seu Fernando H. Cardoso, chamado Gustavo Noboa. Embora não se conheça o parentesco direto de Daniel com Gustavo, as famílias Noboa são ricas empresárias exportadoras, que constam das anotações dos Odebrecht, apreendidas na Operação Lava Jato. O atual presidente nasceu em Miami, onde vivem seus pais.
O Equador, sem o petróleo, fica refém de qualquer grupo internacional. Esse fato vem mantendo a Petroecuador sob domínio do Estado. É país de exportação de produtos primários. Porém o Estado dominado por narcotraficantes terá o petróleo a lhe fornecer ainda mais recursos. E se expandir ao redor, seja pela selva amazonense, pela cordilheira andina, ou pelo planalto central sul-americano.
O Equador não tem moeda própria, o que o torna vulnerável aos fluxos internacionais de capital e de mercadorias, por onde trafegam os ilícitos. A explosão da violência é a consequência da dolarização econômica. A resposta meramente policial, longe de resolver o problema, aprofunda-o, pois, além de não ir à raiz do problema, coloca as forças estatais a serviço de grupos criminosos específicos, combatendo os rivais deles.
O que ocorre no Equador é o sinal de alerta aos governos que se curvam às finanças apátridas. Estamos assistindo a derrocada do mundo ocidental nestes 40 anos de neoliberalismo e defesa do mercado como o senhor das nações.
Não se trata somente da questão econômica ou das soberanias nacionais, trata também do retrocesso moral, do avanço das forças corruptoras e marginais. É verdadeiramente o retrocesso civilizacional.
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(*) Por Felipe Maruf Quintas, cientista político, e Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.