Novo ciclo de descolonização africana aponta a insofismável decadência da geopolítica europeia
Ao iniciar o século 20, à exceção da Abissínia, todo continente africano era colônia europeia: da França, da Grã-Bretanha, da Itália, da Alemanha, de Portugal, da Espanha e da Bélgica. A Abissínia, também designada Império Etíope, resultou do tratado firmado em 1896, o Tratado de Adis Abeba, pelo qual a Itália reconhecia a Etiópia como país independente, porém ficava autorizada a manter sob seu domínio a Eritreia.
Cortado pelo vale formado pelo rifte africano, que se constitui de movimento divergente de placas tectônicas, o local é muito especial para a antropologia. Possui nove sítios considerados patrimônios mundiais pela Unesco e onde foi encontrado o fóssil mais antigo de ancestral humano, Lucy ou Dinknesh, australopiteco, descoberto na depressão de Afar, no Vale do Rifte. Estima-se que viveu há, aproximadamente, 3,2 milhões de anos.
A Etiópia é país jovem, média de idade inferior a 20 anos, com expectativa de vida de 67 anos, majoritariamente rural, taxa de urbanização de 22%, e pobre, PIB per capita de 950 dólares estadunidenses (FMI, 2021).
Em 2018, a Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope (em inglês, EPRDF) escolheu como líder Abiy Ahmed, do partido Oromo, que junto com os Ahmara são dos dois principais grupos étnicos do país. Entre os primeiros atos de Ahmed esteve a assinatura do acordo de paz com a Eritreia, com quem estava formalmente em guerra desde 1998. O gesto lhe rendeu o Prêmio Nobel da Paz e também a desconfiança dos Tigrínios, excluídos da decisão e desde sempre os mais hostis em relação aos eritreus.
Tanto a Etiópia quanto a Eritreia sofreram a invasão neoliberal nas duas décadas finais do século 20 e, como vem ocorrendo na África, buscam novos modelos de autonomia.
Repensar a história do berço da humanidade
O diálogo Sul-Sul começa nos intelectuais africanos do século 19, que buscaram americanos de origem africana, líderes asiáticos e das Caraíbas para discutir as questões do colonialismo, do nacionalismo e do desenvolvimento.
Porém eram muito fortes as influências liberais que deixavam fora da história as narrativas dos oprimidos. Eram vistas como fracassos para construção das nações, a incapacidade das burguesias nacionais e a falta de liderança entre os trabalhadores.
Surge o Grupo de Estudos Subalternos (GES), que busca novos métodos de análise e novas referências de pesquisas. Este Grupo acolhe africanos, asiáticos, sobretudo indianos, e latino-americanos.
As independências africanas que surgem a partir de Gana, em 1957, buscam um domínio que possa ser indubitavelmente africano e resistente a qualquer forma de imperialismo.
São, portanto, afastados os argumentos liberais, mesmo que “progressistas” e, obviamente, o marxista, por universalizante. Os fracassos nas independências das décadas de 1960 e 1970 obrigaram as gerações mais recentes a buscarem novas bases de dados e de avaliação social.
Dentre as novas aproximações sociológicas está do etnólogo alemão Leo Frobenius (1873-1938), que assim se expressou: “Há um vínculo entre o presente e o passado mais poderoso do que pirâmides e bronzes e esculturas e manuscritos: a memória dos homens que não aprenderam ainda a escrever, ou que ainda não tiveram o tesouro das lembranças arruinado pelo uso excessivo da palavra escrita” (Ursprung der afrikanischen Kulturen, 1898, e Kulturgeschichte Afrikas, Prolegomena zu einer historischen Gestaltlehre, 1933).
Havia, de acordo com Frobenius, sempre uma verdade acompanhando os mitos, mesmo que simplificada ou subentendida. E o caso da Atlântida, já encontrado em Platão (400 a.C.), passou a ser verdadeiro ao se deparar com escultura em Ifé (cidade iorubá de 500 a.C.). Ali Frobenius viu surgir e desaparecer a Atlântida nas águas do Oceano Atlântico.
São as memórias inconscientes de uma etnia, de uma cultura, que podem, melhor do que objetos, reportar a origem da tradição, do valor que não morre para aquela sociedade.
O continente africano, nesta segunda década do século 21, abriga quase 1 bilhão de pessoas, que dá a densidade de 30,6 habitantes por km², dividida em cerca de oitocentos grupos étnicos.
Embora polêmico, o trabalho de Quentin Atkinson, da Universidade de Auckland, sobre a origem africana de todos idiomas falados no mundo, aponta para os quatro grupos linguísticos da África: (a) Afro-asiático, no norte e nordeste do continente; (b) Nilo-saariano, que corre a faixa do Sahel e surge mais ao sul, nas proximidades da nascente do rio Nilo; (c) Banto, amplamente dominante no centro e no sul da África, com o (d) enclave dos Khoisan (Bushmen-Hottentots), na região da Namíbia. Na ilha de Madagascar, o Banto se mistura com o malaio-polinésio, mais recente.
A maioria das línguas africanas evoluiu da tradição oral. A datação de 20 a 50 mil anos de seus surgimentos é semelhante aos estudos antropológicos voltados para outros fins, que colocam o homem, que produz a primeira manufatura (Lionel Balout, “A Hominização: problemas gerais”, em História Geral da África, Unesco, 1980, I Volume), ou seja, tem nas mãos artefato inédito, por ele produzido, há 30.000 anos.
Os tempos na evolução das habilidades humanas, a partir do uso da mais antiga pedra, são cada vez menores na medida em que nos aproximamos do tempo atual. Antes do recurso da pedra, o homem só contava com sua energia natural, das pernas, dos braços, do corpo. Pouco diferia dos demais animais.
“A evolução tecnológica durante o Paleolítico e o Neolítico é facilmente demonstrada pela transformação e diversificação dos utensílios de pedra, pela maior eficácia do instrumental lítico, bem como de seus métodos de fabricação” (John E. Giles Sutton, “A pesquisa pré-histórica: introdução à metodologia”, em História Geral da África, Unesco, 1980, I Volume).
Sendo berço do homem, a África foi também pioneira na organização social que, a exemplo de outras civilizações, se deu ao longo dos rios. Na África, o rio Nilo, onde se desenvolveram os egípcios; no Oriente Médio, os rios Eufrates e Tigre, a Mesopotâmia, de onde surgiram os sumérios; e no extremo oriental asiático, às margens do rio Amarelo, os Zhou e os Shang (Yin), ainda que estas dinastias chinesas estejam cercadas de lendas.
As transformações ambientais, como o ressecamento do Saara, fizeram algumas populações da margem sul do Sahel migrarem no sentido leste-oeste, em torno de 3.000 a.C. Estudos arqueológicos em escavações na Nigéria revelaram a “cultura Nok”, no segundo século antes da era cristã. Lá se produziram utensílios e armas de ferro, dando aos bantos condição de superioridade aos povos locais que ainda estavam na Idade da Pedra (Colin Peter McEvedy, The Penguin Atlas of African History, 1980).
Também surgiram complexas organizações políticas, como reinos e impérios, na costa ocidental, ao sul do Deserto do Saara, entre os rios Senegal e Níger, por volta do século 4 a.C. São exemplos o Reino de Gana e a imperial civilização Axun, que dominou o Reino Kush, na parte meridional da península arábica.
Estas populações que se desenvolveram na própria África tiveram limites de crescimento que não conheceram aquelas que se expandiram para outros continentes. As trocas se limitavam às necessidades de sobrevivência e aos recursos disponíveis nas áreas ocupadas.
Um fator de grande transformação foi a expansão do Islã, no século 7, porém não passou da linha do Equador, exceto na costa oriental que atingiu a atual Tanzânia e a ilha de Madagascar.
Talvez esta permanência de boa parte da população originária, trabalhando com as mesmas realidades e dificuldades, tenha impedido o desenvolvimento que encontraram as que cruzaram a Ásia e desbravaram a Europa.
Um continente escravo
O historiador canadense Paul E. Lovejoy, especialista em África, entre sua vasta bibliografia, escreveu, em 2000, Transformations in Slavery: A History of Slavery in Africa, traduzido por Regina Bhering e Luiz Guilherme Chaves para Civilização Brasileira (A escravidão na África – Uma história de suas transformações, RJ, 2002).
Essa defasagem entre a cultura desenvolvida para única realidade e aquela que vai migrando e enfrentando múltiplas condições da natureza e de contato com outros seres vivos deu aos europeus, principalmente, mas igualmente aos mongóis, o ímpeto de dominação que veio a se revelar nos séculos seguintes.
Porém essa pode ser uma condição, outras precisam ser analisadas para explicar, por exemplo, a evolução do “hen”, chineses, que construíram muralhas para garantir seus afastamentos de outras civilizações e inventaram a pólvora, o papel e a impressão, a bússola e o carrinho de mão.
“A escravidão estava fundamentalmente ligada ao trabalho. Não era a única forma de trabalho dependente, mas os escravos podiam ser levados a desempenhar qualquer tarefa. Eles tinham que fazer o que lhes fosse ordenado; como consequência desempenhavam as tarefas mais ignóbeis e pesadas”. E “quando a interação estrutural entre a escravidão, o comércio e o emprego doméstico dos escravos era a parte mais importante da formação social, podia-se dizer que o modo de produção escravo era dominante. Nesse caso, a escravidão tornava-se essencial para reprodução da formação social” Lovejoy (obra citada)
A África negra ou subsaariana esteve isolada do resto do mundo desde a Antiguidade, passando pela Idade Média, até a chegada dos europeus e dos muçulmanos. Isso era comum a outras regiões do globo, com exceção do extremo oriente que realizava trocas pela Ásia e chegaram até a Europa. Houve, assim, uma estagnação no desenvolvimento societário, restrito à etnia e ao parentesco.
Os modos de produção eram definidos pelas idades e sexo, e a escravidão, uma forma de controle. O homem podia ter controle de várias mulheres, e com a chegada do islamismo na África do norte e do leste, esta condição passou a ter, também, um sentido econômico.
No entorno do Mediterrâneo, as relações sociais eram mais complexas e envolviam outras condições que não da etnia e parentesco. A África Negra ficou portanto afastada destas transformações.
Esta condição da escravidão que foi aproveitada pelas religiões e pelo comércio para tolher o desenvolvimento africano transformou, ao fim, em vítima da espoliação internacional. O tráfico de escravos africanos passou a ser uma forma de economia para os não africanos a partir de 1600. Lovejoy afirma que, apenas para as Américas, entre 1600 e 1800, foram enviados quase 10 milhões de escravos, praticamente o dobro da população estimada deste nosso continente.
A luta por uma governança africana
Vimos que a Europa dominou por séculos a África, impôs seus idiomas, religiões e modos de vida. Encontrou a facilidade de um continente em estágio civilizacional mais atrasado. Assim, não é de surpreender que o primeiro esforço de libertação tenha se dado pela cor da pele, o que era a mais evidente diferença dos africanos para os nativos nos demais continentes: a negritude. Porém com a restrição que os primeiros líderes fossem intelectuais de expressão europeia, como Léopold Senghor, Kwame Nkrumah, Agostinho Neto, Patrice Lumumba, Eduardo Mondlane, entre outros.
Constituíram a geração independentista nacionalista dos anos 1960, com forte influência socialista, que desapareceu com a invasão neoliberal globalizante a partir da década de 1980.
No entanto, passado o período de transferência de recursos públicos e de privatizações para que fluísse para o sistema financeiro o patrimônio estatal, a banca, agora denominada gestora de ativos, mostrou sua incapacidade administrativa. Apenas sabe promover guerras e lançar títulos financeiros sem lastro, levando os países onde domina a política à falência, desindustrialização, desemprego, fome e miséria, como se vê na Europa, nos EUA e nas suas colônias financeiras e ideológicas.
Surge então, em países da área do Sahel, nova luta pela independência, agora já experiente do passado recente, buscando, inclusive, tornar oficial os idiomas nativos, sendo os europeus, quando muito, idiomas de trabalho.
Seguem o precursor Julius Nyerere, da Tanzânia, único a ter em idioma africano, o suaíli, a língua oficial do país. O suaíli, falado em 12 países, faz parte do grupo idiomático banto.
Os países que agora se levantam foram colônias francesas, da África Ocidental Francesa: Guiné, Burkina Faso, Níger, Mali, apenas o Sudão do Sul pertenceu ao britânico Sudão Anglo Egípcio.
A CEDEAO, Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental, bloco econômico-militar de 15 países, é criação colonial que logo se manifestou contra as insurreições que atendem aos interesses das populações e não da elite local suportada pelos capitais estrangeiros.
O novo ciclo de descolonização aponta a insofismável decadência da geopolítica europeia, que, de centro mundial, gradualmente retorna à condição de periferia eurasiática, e possibilita à África construir as instituições e as infraestruturas necessárias à integração ativa na globalização comercial e tecnológica, que o colonialismo europeu não pode lhe proporcionar.
Ainda é incipiente, mas pode sair deste movimento novo modelo de governança, na linha do tentado pelo Estado Plurinacional da Bolívia. O importante é assegurar a unidade nacional pela ação estatal, para que os objetivos comunitários possam ser alcançados num mundo que é, como sempre foi, marcado pelo poder dos grandes estados e soberanos.
(*) Por Felipe Maruf Quintas, cientista político; e Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.