Maioria dos especialistas ouvidos na pesquisa avalia que há pouca ou nenhuma sinergia entre as áreas, apesar dos impactos crescentes da crise climática sobre o bem-estar humano
“O Ministério da Saúde adverte: a mudança climática faz mal à saúde”. Esse é um aviso hipotético que poderia estar estampado em qualquer produto ou atividade que contribui para o aquecimento global, como exploração de petróleo e desmatamento. Os impactos negativos da crise climática sobre a saúde já são comprovados por diversas evidências científicas, mas essa conexão ainda é pouco percebida pela população e está longe de ser incorporada às políticas públicas no Brasil — tanto na área de clima quanto da saúde —, segundo um levantamento realizado por pesquisadores do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.
O relatório Avanço e integração das políticas de clima e saúde no Brasil: percepções de stakeholders brasileiros, lançado nesta terça-feira (4/2) no IEA, é baseado em entrevistas com 33 especialistas de diversos setores, incluindo poder público, comunidade acadêmica e organizações da sociedade civil que trabalham com esse tema.
“A vasta maioria dos entrevistados percebe que as políticas de clima e saúde estão pouco ou nada conectadas no Brasil, embora aponte um movimento para a maior integração nos últimos anos”, destacam os autores Daniela Vianna, Patricia Zimermann e Antonio Mauro Saraiva, vinculados ao IEA e ao grupo de pesquisa Saúde Planetária Brasil. A publicação pode ser baixada gratuitamente no Portal de Livros Abertos da USP, e o vídeo do evento de lançamento está disponível no YouTube.
“As mudanças climáticas estão causando danos profundos e crescentes à saúde humana. Eventos extremos recentes e cada vez mais frequentes, como a seca histórica da Amazônia e a tragédia climática do Rio Grande do Sul, são exemplos concretos do quanto a questão climática nos coloca a todos em risco”, diz o relatório. “A questão-chave é até que ponto, de que forma e como as políticas de clima e saúde devem ser combinadas na elaboração de políticas nacionais.”
O objetivo do estudo, em linhas gerais, é fazer um diagnóstico da integração entre políticas de clima e saúde no Brasil; identificar obstáculos e propor estratégias para o fortalecimento dessa integração. Trata-se de uma tarefa urgente, segundo os autores, tendo em vista o agravamento da crise climática e as consequências dela para o bem-estar humano. Os efeitos se materializam de diversas formas, incluindo mortes traumáticas causadas por eventos climáticos extremos (como tempestades, ondas de calor e deslizamentos de terra), agravamento de problemas crônicos de saúde em escala populacional (como doenças associadas à poluição do ar) e aumento na ocorrência de doenças transmitidas por mosquitos (como dengue, zika e chikungunya), que se beneficiam do aumento da temperatura e da umidade em várias partes do planeta.
O Jornal da USP conversou com os três autores do relatório antes do evento no IEA. Os resultados, segundo eles, reforçam o diagnóstico da falta de sinergia entre as políticas de clima e saúde no País. “Uma coisa é a percepção que a gente já tinha dessa desconexão; outra coisa é fazer uma constatação disso a partir das vozes de pessoas que são muito competentes e que estão muito bem posicionadas nesse debate no Brasil”, disse Saraiva. “É praticamente uma unanimidade que essas políticas precisam ser integradas”, completou Vianna.
Escrever o capítulo sobre barreiras a essa integração foi “particularmente difícil”, segundo a pesquisadora, “porque parecia que não acabava nunca”. “Mas é importante apontar que existem muitas oportunidades e estratégias para a superação dessas barreiras”, destacou Vianna. “Tem como a gente endereçar isso e buscar soluções por meio de políticas integradas”, reforçou Zimermann.
Os principais obstáculos apontados pelos entrevistados na pesquisa remetem a questões políticas que dificultam o diálogo entre diferentes agentes do poder público e da sociedade. “A polarização política, o perfil do Congresso Nacional, o negacionismo, as fake news e o plano de desenvolvimento que vai na direção oposta ao combate à crise climática – com apoio ao agronegócio e à exploração de petróleo na foz do Amazonas – também foram mencionados como camadas adicionais de desafios que precisam ser superados”, relatam os pesquisadores.
Tanto é que uma das principais dificuldades enfrentadas pelo projeto foi convencer representantes de segmentos mais à direita do espectro político a participar da pesquisa. No Congresso Nacional, por exemplo, a equipe procurou dezenas de parlamentares, de diversas vertentes políticas, mas só três aceitaram conversar com os pesquisadores. “Ficamos limitados a pessoas que já estão, de alguma forma, sensíveis a essa pauta ambiental-climática e à necessidade de integração”, disse Vianna. A dificuldade de obter uma visão mais plural se fez presente também no âmbito do governo e das agências federais.
Ciência e jornalismo
Outro ponto destacado como obstáculo pelos entrevistados foi a baixa percepção do risco à saúde representado pelas mudanças climáticas. Nesse quesito, cabe a cientistas, jornalistas e comunicadores o desafio de tornar essa conexão mais explícita e mais compreensível para a sociedade.
“Os membros da comunidade científica podem contribuir para as políticas de clima e saúde com estudos interdisciplinares (…) que examinem mais aprofundadamente os impactos das mudanças do clima na saúde humana, bem como os custos econômicos desses impactos na saúde e em outras áreas como agricultura, infraestrutura, transporte e atividades dos setores de geração de energia e gestão de recursos hídricos”, diz o relatório. “Recomenda-se que os acadêmicos se tornem mais protagonistas na formulação de políticas, adotando uma postura alinhada com os conceitos de ‘advocacia responsável’ e implementation science. Os acadêmicos também têm a oportunidade de aperfeiçoar a capacidade de se comunicar não só com a classe política, mas com toda a sociedade.”
“Uma coisa bem relevante que apareceu foi a necessidade de aproximação da ciência com a formulação de políticas”, disse Vianna ao Jornal da USP. “Os tomadores de decisão sentem falta de estudos que comprovem os custos dos impactos e os benefícios da prevenção.”
Esses estudos estão sendo feitos, destacou Saraiva, mas os resultados nem sempre chegam ou são comunicados de forma clara às pessoas encarregadas de elaborar e implementar as políticas públicas necessárias para o enfrentamento do problema. “Acho que uma mea culpa nossa é que falta a gente ficar mais no pé deles; partir pra cima, sabe? A gente faz muito mal isso”, ponderou o professor.
O relatório também chama atenção para o papel fundamental do jornalismo e dos meios de comunicação “na ampliação de notícias e no fornecimento de informações embasadas em dados técnicos para instrumentalizar diferentes stakeholders para a tomada de decisões sobre políticas de clima e saúde”. “Para tal, os comunicadores e jornalistas precisam estar mais bem preparados para incorporar essas interconexões nas suas pautas em diferentes editorias, seja na cobertura de desastres, seja para estimular e cobrar medidas preventivas, de mitigação e de adaptação”, escrevem os autores.
O Sistema Único de Saúde (SUS) é identificado como uma peça-chave para a integração de políticas de clima e saúde, em função da sua “capilaridade e abrangência”. Mas são necessárias melhorias — por exemplo, na capacitação dos profissionais de saúde para lidar com o tema e na notificação de mortes e doenças relacionadas ao clima. Não existe um código internacional (CID) que permita fazer essa correlação, o que dificulta a mensuração dos impactos da crise climática na saúde. Por exemplo: as pessoas que morreram afogadas nas enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul aparecem nas estatísticas apenas como “vítimas de afogamento”, sem menção ao fato de que essas mortes estão associadas a um evento climático extremo.
Já a trigésima Conferência das Partes (COP 30) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, prevista para acontecer em novembro em Belém (PA), é apontada como uma oportunidade estratégica do Brasil para a promoção de uma maior integração entre clima e saúde. “Os participantes (da pesquisa) destacam que o período que antecede a realização da Conferência do Clima no país fomenta debates internos e mobiliza diferentes segmentos da sociedade, criando um ambiente propício para a produção de dados e para o fortalecimento da agenda climática e de saúde”, diz o relatório.
Esforço internacional
Os nomes dos 33 entrevistados na pesquisa não foram divulgados para preservar a identidade das fontes. Segundo os autores, essa foi uma regra estabelecida para todos os países em que a pesquisa foi realizada. O estudo faz parte de um projeto multinacional financiado pelo Wellcome Trust (uma organização filantrópica de apoio à ciência, com sede na Inglaterra) e coordenado pelo Center for Climate Change Communication, da George Mason University, nos Estados Unidos.
A mesma pesquisa foi realizada nos Estados Unidos, na Alemanha, no Quênia, no Reino Unido, e num grupo de países caribenhos. Um relatório-síntese, agregando todos os resultados, deve ser publicado nas próximas semanas.