Era considerada um jardim agroecológico de alimentos e remédios. Pessoas foram recuperadas na horta, outras estavam em processo de resgate. A horta era uma âncora, um instrumento de terapia, de cura
Certas atitudes dos governos são postas em prática para parecer que foi uma trapalhada qualquer porque, se por acaso resultar em protestos e celeumas, jogam a culpa em algum funcionário ou desculpa qualquer. É o caso da horta comunitária dos moradores de rua situada no Setor Comercial Sul, no centro de Brasília. Funcionários da Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil (Novacap) destruíram, em alguns minutos, uma horta comunitária cuidada por moradores de rua na região na quarta-feira (10/2). Eles alegaram que o local em que a horta estava sendo cuidada há anos, localizada no Centro de Atenção Psicossocial (CAP), “estava sujo”.
Em nota à impensa, o Instituto No Setor, que atua para amenizar a situação dos moradores de rua no Setor Comercial, informou que , além de fornecer alimentos, a horta era utilizada na ressocialização de moradores em situação de rua. “Eles estão acabando com o alimento comunitário, além de um espaço terapêutico, de redução de danos e de criação de vínculos com os moradores. Era, inclusive, um local no qual alguns deixavam de usar drogas e álcool para fazer o manejo da horta”, afirmou a organização não governamental.
Em resposta, a Novacap disse que “que apenas cumpriu a solicitação da Polícia Militar do DF (PMDF), que pediu a remoção da horta para manter a segurança da população, já que o local estava servindo como ponto de esconderijo de armas e drogas”. Juarez Alves Martins, jornalista, agricultor urbano agroecológico, integrante do Coletivo Aroeira, que atua com redução de danos no Setor Comercial Sul, e estudante de pós-graduação em Cultivo Biodinâmico de Ervas Medicinais na Fiocruz, critica a justificativa e condena a atitude do governo.
“Eu estou muito chocado e estarrecido com o atrevimento, a truculência e a violência da ação da Novacap. Eles destruíram a horta sem qualquer aviso, sem qualquer possibilidade de diálogo, sem dó ou piedade das pessoas que apenas olhavam assustadas. Aquela horta foi muito sonhada, desejada e concebida coletivamente. Desde o primeiro momento as pessoas em situação de rua participaram do projeto, escolheram o local, as plantas que seriam cultivadas, ajudaram a plantar e a cuidar da horta”, denuncia.
Martins afirma que o que a Novacap destruiu, era um jardim agroecológico de alimentos e remédios. Ele informa que pessoas foram recuperadas ali na horta, outras estavam em processo de resgate e a horta era uma âncora, um instrumento de terapia, de cura. “Lembro de uma moça que gostava de dar nome a cada planta. Ela batizou, na minha frente, um manjericão de “João” e uma erva-cidreira de “Maria”. Fiquei curioso e perguntei o motivo disso, ela me respondeu que era para cuidar melhor e matar a saudade dos seus pais, que se chamavam assim e estavam distantes”.
Ele afirma que, ao destruir a horta, “a Novacap arrancou também, e jogou no lixo, plantas que significavam, para aquela moça e muitas outras pessoas, vínculos com suas famílias, sonhos de reinserção na sociedade, ervas que despertavam sentimentos, vontade de cuidar, certezas de que ainda se pode ser útil a outra vida”.
Importante lembrar também que a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação do Distrito Federal (Seduh) divulgou, em setembro do ano passado, a minuta de um projeto de lei que prevê a transformação de 30% do Setor Comercial Sul (SCS), no centro da capital, em área residencial.
O texto determina que os apartamentos tenham, no máximo, 60 metros quadrados de área e que o público-alvo prioritário das moradias sejam “atores que contribuem para a vitalidade e manutenção das atividades e serviços característicos do local”.