Ausência de consulta prévia é um dos problemas identificados; longa duração dos contratos afeta cultura dos povos
No início de agosto, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou a suspensão de todos os projetos de Redução de Emissões provenientes do Desmatamento e Degradação Florestal (REDD) que incidem sobre territórios tradicionais no estado do Amazonas, em áreas públicas ou privadas.
Poucos meses antes, em maio, o governo do estado havia anunciado a aprovação de 21 projetos desse tipo, cuja finalidade é a comercialização de créditos de carbono, a serem desenvolvidos em Unidades de Conservação (UCs) no Amazonas. As iniciativas seriam desenvolvidas por cinco empresas: as brasileiras BR Carbon, Carbonext e Future Carbon, a suíça Ecosecurities e a inglesa Permian Brasil Seviços Ambientais.
Entre os motivos do pedido de suspensão, o MPF destaca a ausência de consulta prévia às comunidades afetadas, como nas propostas do governo do estado. “(…) O MPF no Amazonas entrou em contato com várias lideranças tradicionais destas unidades de conservação estaduais, que são territórios tradicionais destes povos há décadas ou séculos, e foi informado por elas que não houve qualquer consulta ou contato”, informa um trecho do documento.
Além do governo do estado, a orientação do MPF foi destinada a ONGs, empresas e pessoas que desenvolvam projetos em áreas privadas onde há presença de comunidades tradicionais.
“Mesmo que não esteja demarcado, ou não haja uma unidade de conservação, mas o projeto incida sobre uma área de pesca, caça ou extrativismo de castanha, copaíba, de povos ribeirinhos, quilombolas, indígenas, isto configura um território tradicional protegido pelas leis nacionais e internacionais”, explica o procurador Fernando Meloto Soave. O pedido de suspensão se estende a todos esses territórios.
Com longa duração, os contratos de projetos REDD podem variar de 30 a 50 anos, período pelo qual o manejo da terra fica submetido às normas estabelecidas no documento. Para o pesquisador Carlos Ramos, da Universidade Federal do Pará (UFPA), essas condições impactam a rotina e a cultura desses povos.
Como exemplo, ele menciona a prática da coivara, técnica tradicional que consiste na derrubada e queimada de pequenas porções de floresta ou de capoeira para o plantio do roçado. “Fazer a roça não significa destruir a floresta. Só que os mercados de carbono entendem isso como um crime”, explica o pesquisador, que estuda o impacto de projetos REDD no cotidiano de comunidades tradicionais na Amazônia Legal.
A coivara é uma prática sustentável e reconhecida como patrimônio cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Como os contratos de créditos de carbono pelo mecanismo REDD submetem o manejo do solo às cláusulas estipuladas por quem não vive naqueles territórios, saberes como esse ficam ameaçados.
O MPF ressalta que o uso tradicional dos territórios pode ocorrer a quilômetros de distância das moradias. De tempos em tempos, essas pessoas caminham mata adentro para a extração das castanhas, copaíba, seringa e outros produtos, em áreas, muitas vezes, sem regularização fundiária.
Nessa situação, a insegurança jurídica afeta não somente as comunidades, mas também pessoas que compram essas terras. “(…) que, por vezes, se não estiverem de má-fé, podem ser enganados e ‘comprar’ títulos de imóveis registrados em cartório, mas sobrepostos a estes mesmos territórios tradicionais e, portanto, nulos ou anuláveis”, informa o texto.
Em resposta ao Brasil de Fato, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sema) do Amazonas informa que segue a legislação aplicável para viabilizar projetos de REDD+ em UCs e reforça que os projetos selecionados, por chamamento público, ainda não foram aprovados e estão em fase de realização de consultas públicas junto às comunidades.
O governo do estado informa ainda que “nenhum projeto será elaborado sem o consentimento das populações tradicionais e que só serão executados caso sigam estritamente o que foi decidido pelos comunitários e parâmetros previstos em edital”.
Casos de grilagem descredibilizam projetos e ameaçam comunidades
Na avaliação de Mauricio Torres, professor da UFPA e pesquisador de conflitos territoriais na Amazônia, o mercado de créditos de carbono tem potencial de incentivar a falsificação de títulos de terra, prática conhecida como grilagem.
“Surgiu algo novo, o interesse comercial em terras em locais remotos, sem condições logísticas favoráveis. Passou a ser, então, comercialmente interessante forjar títulos para essas terras. Abriu-se mais um mercado de grilagem nessas terras”, explica.
Muitos desses títulos falsos são sobrepostos a territórios tradicionalmente ocupados, mas ainda não formalmente reconhecidos como de direito dos grupos que ali vivem, sejam indígenas, ribeirinhos, camponeses ou outros povos da floresta. “A floresta é ocupada. Essa história de floresta vazia é um mito”, alerta o pesquisador.
Em um escândalo recente, o médico e empresário Ricardo Stoppe Júnior foi investigado por fraudar documentos e adquirir uma área de mais de 500 mil hectares na Amazônia. Em parte dessas terras, ele desenvolveu projetos de créditos de carbono.
Antes de ser apontado nas investigações da Polícia Federal (PF), Stoppe chegou a dar entrevistas falando sobre seus lucros nesse ramo e foi apelidado de ‘Rei do Carbono’. Em 2020, uma reportagem da revista Exame informava que o empresário havia faturado R$ 18 milhões em carbono na Amazônia.
As fraudes vieram à tona com a operação Greenwashing, título que faz referência à prática de divulgação de supostos benefícios ao meio ambiente para mascarar ilegalidades.
No Pará, a empresa Jari Celulose realizou, com a Biofílica Ambipar, um projeto de créditos de carbono que acabou suspenso após denúncias de uso de terras públicas com títulos irregulares. O grupo desenvolveu atividades do projeto em área habitada por extrativistas e agricultores, que acusam a Jari Celulose de falta de transparência nos processos. Alguns dizem ter recebido ofertas em dinheiro para participar do projeto, mas o pagamento nunca chegou até eles.
O pesquisador Carlos Ramos cresceu no município de Almeirim (PA), no território controlado pela Jari Celulose. Com o avanço dos projetos de créditos de carbono, ele teme que outros territórios tradicionais passem a ser submetidos às regras estabelecidas por grandes corporações.
Para o pesquisador, esses os acordos ignoram o modo de vida dos povos da floresta, prejudicando a autonomia de quem habita essas áreas. “Eles não querem nos tirar a floresta. Eles querem nos eliminar de ser parte da floresta”, avalia.
Como funciona?
REDD é uma abreviação para Redução de Emissões provenientes do Desmatamento e Degradação Florestal. Há também a variação REDD+, onde o ‘+’ se refere à conservação do estoque de carbono florestal, manejo sustentável da floresta e aumento do estoque de carbono florestal. Esses instrumentos permitem que empresas compensem as emissões de gases de efeito estufa, a partir da compra de créditos gerados por projetos de captura de carbono.
Na prática, quem mantém a floresta em pé pode gerar créditos de carbono e vender para empresas e instituições que não conseguem reduzir as emissões de CO₂ em suas práticas de rotina. Assim, o dono de uma fazenda que mantém uma grande área preservada pode vender os créditos de carbono para uma companhia da aviação com altas taxas de emissão de gases poluentes, por exemplo.
Entre uma ponta e outra dessa negociação, estão as certificadoras, como a Verra e a Cercarbon, que armazenam dados e informações sobre os projetos. Há também empresas especializadas em elaboração de projetos de créditos de carbono, como Carbonext e BR Carbon.
Nesse mercado, há os proponentes, que controlam e se responsabilizam pelo projeto, podendo ser o proprietário da área ou da tecnologia aplicada; os desenvolvedores do projeto, que reúnem informações, avaliam metodologias e preparam a documentação necessária; e os implementadores, responsáveis pela operação da atividade desempenhada no projeto, geralmente mantendo um relacionamento direto com a comunidade local, podendo ser o próprio proponente, o desenvolvedor ou outra empresa especializada.
Quando os projetos estão em operação, são submetidos periodicamente a auditorias conduzidas por empresas estrangeiras. “Basicamente são empresas indianas e chinesas que contratam um profissional para vir aqui ver o projeto”, explica Shigueo Watanabe Jr, especialista sênior no mercado de créditos de carbono pelo Instituto Talanoa.
“O quanto ele sabe da legislação brasileira vai depender muito da experiência dele”, avalia Watanabe. As auditorias são focadas no projeto e nas emissões. Problemas sobre propriedade e posse da terra e outros temas relacionados à legislação brasileira podem ser ignorados nesse processo.