O desastre econômico provocado pelo confisco dos ativos financeiros que Collor decretou nos primeiros dias de seu governo, a tal bala de prata que acabaria de vez com a inflação, foi o começo. Depois vieram a redução de sua base de apoio político e as denúncias de corrupção, mas até aí ninguém acreditava que o impeachment fosse possível: mesmo com tudo isso, dizia-se, um Presidente tem tais poderes e tal soma de recursos políticos e materiais à sua disposição que é impossível não dispor de apenas um terço da Câmara dos Deputados para submetê-lo a julgamento e destituição.
Mas a situação mudou e mudou rapidamente – e um episódio foi decisivo. Quem me contou foi Waldyr Pires, candidato a Vice de Ulysses Guimarães na eleição de 1989, que o ouviu do próprio Ulysses.
As críticas ao governo Collor se acumulavam, pelo desastre de sua política econômica, assim como as denúncias contra Collor pelos indícios e já evidências de corrupção, mas quase ninguém achava possível um processo de impeachment alcançar os dois terços de votos na Câmara e depois mais dois terços no Senado.
Como derrubar constitucionalmente um Presidente eleito pelo voto direto, em dois turnos de votação, depois de mais de vinte anos de “eleições” indiretas com candidato e resultado imposto pelos comandos militares? E como reagiriam os militares a esse fracasso de governo civil depois de se terem afastado pacificamente do poder?
A transição do governo militar para o governo civil fora complicada e demorada. No governo Figueiredo, o último do ciclo militar, desgastadíssimo politica e economicamente, o restabelecimento das eleições diretas para Presidente fora impedido pela violência por medo de uma vitória de Brizola pelo voto popular. No governo Sarney, o primeiro governo civil da transição, mas ainda eleito pelo voto indireto, a primeira eleição direta poderia ter sido convocada para 1985 pelo Congresso e para 1988 pela Constituinte mas de novo não aconteceu, agora por um suposto ou verdadeiro veto militar motivado pelo medo da vitória de Brizola ou Lula.
Em 1989, afinal, o Brasil teve sua eleição presidencial direta, a primeira desde a de 1960, no fim do governo JK, e o primeiro governo civil começou pelo devastador congelamento dos ativos financeiros e pela estranhíssima presença de figuras como o famoso PC Farias. Em 1962 já havia certezas, não apenas convicções, quanto às práticas de extorsão pelo esquema PC Farias, e dúvidas quanto ao que fariam os militares. Voltariam a ocupar o poder se Collor caísse?
Aí aconteceu um episódio aparentemente menor, mas decisivo na virada do Congresso contra Collor. O então Ministro da Marinha (hoje seria o Comandante), Almirante Mario Cesar Flores, procurou Ulysses, ainda presidente do PMDB, e contou ter sido procurado por uma jovem tenente da Marinha que fora premiada por suas notas altas na Escola Naval com a designação para servir no Gabinete Militar da Presidência da República na função de ajudante de ordens.
Nessa função, ela era frequentemente escalada para a Casa da Dinda, a residência particular onde Collor vivia. Na Casa da Dinda, a jovem tenente começou a testemunhar acontecimentos que a deixavam constrangida e até envergonhada. O Almirante já ouvira falar de algumas dessas cenas e sabia que a tente falava a verdade. E respondeu: – Minha filha, você, como ajudante de ordens do Presidente, está surdinada ao Gabinete Militar, não a mim, e cometeu um ato de indisciplina ao me procurar. Mas é tão grave o que me conta que vou passar por cima dos regulamentos e providenciar outra função para você.
Para o Ministro da Marinha, como disse a Ulysses, o caso da jovem tenente confirmava que Collor ultrapassara o limite e sua situação não tinha volta. E acrescentou, deixando implícito que não falava apenas em nome próprio, falava também pelos ministros do Exército e da Aeronáutica: — Esteja certo, dr. Ulysses, de que o Congresso decidir as Forças Armadas respeitarão.
Essa frase logo se tornou conhecida e abriu as comportas da Câmara para a aprovação do impeachment por dois terços de seus votos. Alguma coincidência com a situação de Bolsonaro depois do confronto com o alto-comando militar?
(*) José Augusto Ribeiro – Jornalista e escritor. Publicou a trilogia A era Vargas (2001); De Tiradentes a Tancredo, uma história das Constituições do Brasil (1987); Nossos Direitos na Nova Constituição (1988); e Curitiba, a Revolução Ecológica (1993). Em 1979, realizou, com Neila Tavares, o curta-metragem Agosto 24, sobre a morte do presidente Vargas.