O documentário Marias não se limita a retratar a vida de Maria Prestes. Ele traz histórias de outras mulheres que marcaram diferentes momentos no Brasil, como Maria Bonita, Olga Benário, Dilma Rousseff e Marielle Franco
Maria do Carmo Ribeiro, foi companheira do líder comunista Luís Carlos Prestes durante anos. Ao seu lado, passou pela clandestinidade em São Paulo, morou no Rio de Janeiro, militou no Nordeste e se exilou na Rússia. Além disso, Maria criou nove filhos em meio a luta política.
O documentário estreou em alguns cinemas brasileiros no dia 17 de outubro, mas no mês de dezembro foi exibido pela primeira vez no Rio de Janeiro, Paraíba e Rio Grande do Norte. O longa foi dirigido pela jornalista Ludmila Curi e com distribuição da Descoloniza Filmes
A diretora foi clara ao explicar sua escolha sobre a história que gostaria de contar: “Maria teve uma trajetória de vida extraordinária – de militante rural nordestina a exilada com nove filhos na União Soviética – e, é uma mulher desconhecida do grande público, mesmo tendo passado 40 anos ao lado de Luís Carlos Prestes”.
O que se destaca no filme Maria é a presença de outras figuras femininas que marcaram a história do Brasil, como Maria Bonita, Olga Benário, primeira esposa de Luís Carlos Prestes que foi entregue pela Ditadura de Getúlio Vargas aos nazistas. A ex-presidente Dilma Rousseff, que ainda jovem foi torturada e presa durante a ditadura militar brasileira e sofreu um golpe de estado em 2016, quando foi obrigada a sair da presidência. E, por fim, Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro assassinada em 2018. Apenas no início de novembro deste ano, os ex-policiais militares Élcio de Queiroz e Ronnie Lessa foram condenados.
Além disso, a obra traz dezenas de imagens de arquivos por onde a protagonista viveu e entrevistas com familiares. Discursos de Dilma e falas importantes de Marielle antes de ser brutalmente morta: “A gente sai de 2014 com a Dilma eleita, logo na sequência a elite se incomoda, já estavam na expectativa da vitória do PSDB e do que eles estão implementando com PEC e a redução de direitos… E começa o processo do golpe, está colocado que vamos precisar olhar quem é o deputado estadual, deputado federal, senado, governador e presidente, olhar para a chapa completa. Acho que vai ser um trabalho de engenharia muito grande, com muito debate e encontro”.
Em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, Ludmila fala mais sobre a produção do documentário, a importância de saber quem foi Maria Prestes, as mulheres brasileiras marcantes na luta pela igualdade e como o longa pode impactar em um momento de grande polarização política. Confira a entrevista na íntegra:
Maria Prestes é lembrada por sua resistência política, como o documentário explora isso?
A contribuição da Maria Prestes para a história do Brasil foi concreta, prática. O filme mostra como ela se engajou na política de forma orgânica, foi militante no Nordeste, perseguida na Ditadura Vargas, e, na clandestinidade, se tornou responsável pela segurança do líder comunista mais procurado do país. O documentário destaca também como ela foi mãe nesse contexto adverso, e conseguiu não só criar nove filhos, mas garantir a segurança de sua família e seguir na luta por um Brasil mais justo. Por fim, o filme ainda mostra como Maria lutou até o fim da vida pela causa que lhe era mais cara: a reforma agrária.
Em um momento de grande polarização política e desafios sociais, você acredita que a história de Maria pode trazer lições relevantes para os dias atuais?
A maior lição que a Maria deixa para as futuras gerações é o engajamento. Mesmo com mais de 80 anos, ela atravessava o Brasil para dizer: mobilizem-se! Ela acreditava e apoiava associações de quaisquer naturezas que se constituíssem em assembleias para a solução de problemas de uma comunidade. Ela acreditava na força das pessoas como corpo coletivo. Maria Prestes também defendia muito que as pessoas plantassem alguma coisa, colocassem a mão na terra, acompanhassem o crescimento de uma semente, e isso para mim é uma metáfora do que ela acreditava, que com participação, diálogo e cultivo é possível criar um futuro melhor.
No Brasil, muitas figuras femininas que desempenharam papéis decisivos ao longo da história acabam sendo esquecidas. Qual é a sua opinião sobre a falta de reconhecimento de Maria Prestes? Como o documentário pode ajudar a preencher essa lacuna?
Acho que o desconhecimento sobre Maria Prestes é coerente com a invisibilidade que recai sobre as mulheres como personagens da história. Escancara bem o quanto a memória que se construiu do Brasil é resultado de uma narrativa patriarcal, centrada nos homens e seus grandes feitos. O que o documentário Marias faz, a partir da trajetória de sua protagonista, é percorrer os acontecimentos do último século sob um ponto de vista feminino, olhando para essas personagens – mulheres anônimas e famosas – ofuscadas pelo discurso hegemônico, mas que tiveram papéis importantes em momentos decisivos da história do país e do mundo. Colocamos no ar um site – filmemarias.com – onde disponibilizamos informações do filme, fotos, trailers, e estamos recebendo inscrições para a organização de sessões em cineclubes e espaços culturais e educativos. Acreditamos que essa lacuna a ser preenchida é muito grande, e queremos fazer a nossa parte, levando o filme Marias para o maior número possível de lugares.
Por fim, qual foi o maior desafio na construção da narrativa sobre Maria Prestes? E quais desafios ainda encontra no meio audiovisual por ser mulher?
O maior desafio foi construir uma protagonista clandestina, mas esse obstáculo nos fez olhar de novo para todo o material captado nas filmagens, para os arquivos levantados na pesquisa, e acabamos gostando muito do resultado. Construímos assim Marias, um filme que fala não só de Maria Prestes, mas imprime a potência revolucionária que as mulheres carregam e destaca alguns nomes que marcaram a história do Brasil, como Maria Bonita, Dilma Rousseff e Marielle Franco. Ainda vivemos sob uma lógica machista no mundo, que inclusive ganha força hoje com o avanço da extrema direita, e isso se reflete na esfera privada e pública. No mercado de trabalho audiovisual não é diferente, pois ainda ganhamos menos recursos nos editais públicos, trabalhamos com salários menores, e muitas vezes não temos escuta, mesmo quando ocupamos lugares de liderança. É uma luta diária, permanente.
(*) Maíra Oliveira Graça é parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.