Há alguns meses fiz tradução de um texto intitulado “As sete vidas de Iván Márquez”, escrito pelo jornalista colombiano León Valencia em Las2 Orillas.
Se trata de uma retrospectiva da trajetória do Comandante e membro do Estado-Maior Central das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia-Exército do Povo, a mais duradoura guerrilha da América Latina, extinta em setembro de 2016 através do Acordo Final de Paz pactuado com o governo colombiano, sendo Juan Manuel Santos o então presidente.
Para as FARC-EP fiz, desde o início deste século, durante década e meia, centenas de traduções, voluntariamente; algumas delas foram publicadas na revista RESISTÊNCIA, órgão oficial da organização. Esta foi uma empreitada à qual me dediquei com muito prazer e muita honra, exercendo a nobre causa do Internacionalismo proletário.
O título do perfil de Iván já deixa explícito que a análise discorre acerca das várias vezes em que o guerrilheiro escapou da morte. Inspirado nela, ou por ela, comecei a puxar o fio da minha história e fui recordando das várias ocasiões em que estive quase caindo nas garras da dama da foice.
A arrancada da minha carreira tipo fio da navalha se deu em dezembro de 1952, eu contava então com 8 meses de desembarque no Planeta Terra.
Deu-se que naquele mês ocorreu uma tremenda tromba d’água em Santa Maria.
Morávamos, meus pais, Dizinha e Joãozinho Lisboa, na rua Nilo Peçanha, originalmente Rua da Caatinga.
Esta história me foi contada pelo advogado Zequinha Lisboa, tio pelo lado paterno.
A tragédia estourou em plena madrugada.
Meu avô Joaquim Lisboa, o próprio Zequinha e alguns irmãos dele correram para nossa casa a fim de nos socorrer.
O aguaceiro deslocou meu corpinho do berço, a boiar…
Assim que Arnóbio me pegou nos braços e saiu do quarto, imediatamente uma das paredes desabou pro lado de dentro.
Salvo, portanto, pelo tio e por um triz.
Gozava eu os prazeres da primeira infância, uns 5 anos.
Rua da Lagoa, atual dos Doidos, anos 50s.
São João com arvoredos repletos de iguarias. Não só sólidas como também líquidas. A canjebrina num podia faltar.
Num desses festejos juninos ocorreu que, quando a marmanjada caiu matando para o saqueio lícito, vi uma bunda apontando pra lua cheia.
Não sei de onde, me apareceu, como num passe de mágica, um foguete e uma caixa de fósforos.
Menino sádico, mirei na chamada região glútea do saqueador e lá se foi explosão. Quando ele sentiu os países baixos em estado vulcânico, se virou pra ver quem tinha sido o autor da perversa façanha.
Me viu com o foguete ainda na mão, soltando uma fumacinha.
Foi a conta!
Partiu na minha direção, espumando, feroz, com gosto de gás, pra me esganar. Com razão!
Foi necessária a interferência de uma dezena de brutamontes pra segurar a fera.
Qui porra!
Escolhi como alvo da minha traquinice justamente o traseiro de Sabino, ex- cangaceiro de Lampião.
Dentre as diversões preferidas pela turma da minha geração na primeira metade dos anos 60s, além do futebol e do debute na deliciosa arte de namorar, estavam os banhos de rio no Corrente.
Em uma dessas nadadas vespertinas, eu estava no meio do rio entre Santa Maria e São Félix quando uma cãibra me pegou literalmente pelo pé
Comecei a gritar por socorro, mas um dos caras que estavam na margem disse que eu estava com gozação.
Aí não me segurei:
— Gozando porra nenhuma seu filadaputa! Tou me afogando de verdade!
E submergi para o primeiro dos três fatais mergulhos. Quando emergi do segundo, finalmente um deles se aproximou e me içou.
Traumatizado, paranoico, fiquei uns seis meses longe da beira rio.
Só voltei a banhar nas águas deste afluente importante do Velho Chico na fase imediata a pós-adolescência, de manhãzinha pra curar ressacas frutos das homéricas farras nos bordéis, e à noite pra abrir os apetites.
Fevereiro de 1973, carnaval chegando, eu na infância da fase adulta.
Fui encarregado por Mário Campos Júnior, Marinho, irmão de minha mãe, de pegar um TL da Volks em Brumado e levar pra ele em Beagá.
Contratei o motorista Anísio Carcará.
Voltamos para Guanambi, passamos por Urandi, onde demos carona a dois desconhecidos, atravessamos divisa e adentramos Minas, Espinosa.
Amanhecia o dia quando, entre Janaúba e Montes Claros, o veículo, agora pilotado por um dos caroneiros, entrou numa curva fechadíssima.
Só ouvi o motorista exclamar: “vixe!”
Fui arremessado pela porta, o TL capotou quatro vezes para a esquerda e eu voei para a direita arriando no meio do mato.
Acordei na beira da estrada.
Tentei mover a perna esquerda, nada! O braço esquerdo, nada! Passei a mão no rosto, sangue adoidado.
Os caras, que sobreviveram às capotagens, só me acharam porque eu, quando acordava, gemia.
Na clínica o laudo: fêmur isquiático fraturado, clavícula também.
Resultado: imobilizado por infindáveis 60 dias numa cama, só olhando para o teto.
Mas ainda não foi desta vez que dancei.
Década seguinte.
Baixa na nossa aldeia uma beldade belo-horizontina chamada Cristina.
Era chegada a um baseado e nuns finólios a adolescente. A comunidade cannábica [leia-se maconheir@s] local, ao saber que a girl era neta do delegado-tenente Joaquinzinho, se esquivou, pois o tira, de tão truculento, ganhou logo na cidade o apelido de Trovão, aplicado pelos gaiatos da terra.
Alguém soprou meu nome, deu a dica e Cris baixou no meu terreiro. A qual não mandei pro padre, tampouco pro bispo.
Assim sendo, na sequência, noturnamente rolavam no meu lar sessões musicais e outras mais [i]legais, numa fase em que eu vivia celibatariamente.
Até que uma noite seu tenente-delegado foi estacionar sua viatura justamente em frente ao meu não tão doce lar. E a neta do homi estava lá naquele exato momento!
Escapamos pelo quintal e um primo cujo nome não posso divulgar ficou administrando o esperado baculejo. Que felizmente não aconteceu.
O xerife perguntou por mim, o camarada disse que eu num tava.
— Vou entrar aí e fazer uma revista!.
O primo não se afobou, ficou impassível: “Pode entrar doutor!”. O homem da lei deu meia-volta e se mandou com seus paus-mandados.
Ao fim e ao cabo, deu em happy end e passamos a nos encontrar às escondidas porque com Trovão não se brinca!!
Num desses passeios noturnos pela zona semi rural fomos, só ela e eu é claro, a bordo de um jipe do juiz de direito à época, que me foi emprestado por um causídico amigo.
Com a neta do tenente e pilotando veículo do maioral da justiça local, é mole?
Fevereiro 1979. Na boca da noite começa a circular pelas ruas da cidade a edição nº 1 do jornal O POSSEIRO, na esteira do sucesso do nº 0, experimental, como era praxe na imprensa alternativa.
Na página 5 do nosso recém-nascido periódico matéria intitulada “NEGADO SEGUNDO HABEAS CORPUS PARA IMPLICADO NA MORTE DE EUGÊNIO LYRA”, parcialmente transcrita no jornal A Tarde, de 26 de janeiro, Salvador.
No dia seguinte, já pela manhã, fui vítima de duas tentativas de agressão física, impedidas pela turma do deixa-disso; a terceira ocorreu lá pelas 5 da tarde, na qual quase me foi traiçoeiramente ceifada a vida através de um punhal enferrujado empunhado por um filho do acima citado implicado no crime que tirou a vida do advogado. [A propósito, vide matérias anexas publicadas no Jornal da Bahia, no Estadão de Sampa e nas edições 1 e 6 d’O POSSEIRO, fevereiro e outubro 1979]
Escrevo e publico no mesmo jornal, desta vez na edição nº 6, outubro 1979, reportagem relativamente extensa [título: GRILEIRO PERNAMBUCANO DÁ GOLPE SUJO EM LAVRADORA] denunciando um dos mais atrozes atos de grilagem de terras cometidos na Bacia do Rio Corrente, perpetrado por Mário Clemente da Silva, oriundo do Pernambuco.
Dias depois, recebo a visita de um homem dizendo que Rogério, pistoleiro maior do grileiro, viria me visitar na Biblioteca Campesina. Objetivo: me fazer engolir as páginas do periódico. Ele não veio, não vem, nem virá. Há muito tempo que o meteram num paletó de madeira. Que Deus o tenha e não aceitamos devolução.
Uns 10 anos depois, curti (sic) mais dois acidentes nas minhas estradas.
Em 1985, madrugada, lá íamos nós num Escort a 130 por hora. De repente, o piloto se distraiu e o carro foi adentrando no acostamento pela direita. O chofer jogou o bicho pra margem esquerda que, na sequência, se deslocou para o centro da pista e, desgovernado, ficou piruetando até deslizar para fora da BR 242.
Fomos salvos.
Não pelo gongo, mas sim por uma pedra no meio do caminho da ribanceira.
Ave, Drummond!
Isso ocorreu entre Itaberaba e Paraguaçu.
O outro aconteceu, já nos inícios deste século, entre Alvorada e Formosa, Goiás, em uma manhã de sol e chuva.
A D20, adaptada como se fosse van, com uns 10 passageiros, passou por uma poça d’água e derrapou pra margem esquerda. Zé da Viola manejou pro lado direito. Voltou para o meio da BR-349. Na sequência, ficou desgovernada, foi descendo do asfalto, primeira capotagem, segunda… ; na terceira estancou.
Saímos pela janela do piloto.
Uma idosa que estava ao meu lado, naqueles longos cinco minutos em que durou o ato, chamou por quase mil santos.
Todos ilesos.
Inclusive o autor destas linhas quem, chegando em Brasília, foi direto para o Hospital de Base, lá onde se detectou uma costela fraturada. Fichinha!
Neste caso a história se repetiu. Sem farsa e sem tragédia.
Primeira semana de abril, 2016.
Fazia uma duas semanas que o nosso mestre maior Clodomir Morais infinitara.
Sozinho, de tardezinha, ia eu arrumando livros na estante de aço seis bandejas.
Já tinha colocado uns 300 livros nela quando ouvi um estrondo.
Quando olhei para trás, vi a monstra arriada ao meu lado, a menos de meio metro, os pés dianteiros totalmente retorcidos.
Tivesse eu um pouquinho mais perto dela, não estaria neste momento redigindo este relato.
Escapei de ficar gravemente aleijado ou partir para muito além do sol, vítima de um, digamos, bibliocídio ou livrocídio.
E por aqui vou parar sob pena de ter que alterar o título destas Memórias de um Sobrevivente.
Contando alguns desses casos para uma amiga, senhora moradora no aprazível povoado do Cuscuzeiro, grande celeiro de mulheres exuberantes, belas, ademais de muito cultas, ela me disse de forma jocosa:
— “Até pra morte o senhor dá trabalho! Vôte!”
Digitação > Thaise Diamantino Coelho
Biblioteca Campesina, 25 maio 2024
Todas las historias, todas las miradas, desde todos los rincones.
(*) Joaquim Lisboa Neto, colunista do Jornal Brasil Popular, coordenador na Biblioteca Campesina, em Santa Maria da Vitória, Bahia; ativista político de esquerda, militante em prol da soberania nacional.