Dedicou-se a denunciar violações e crimes contra indígenas na ditadura
Morreu nessa segunda-feira (8), aos 59 anos, o pesquisador Marcelo Zelic, que se dedicou à defesa dos direitos dos povos indígenas e um dos responsáveis pelos estudos sobre violências contra os povos indígenas realizados pela Comissão Nacional da Verdade. Zelic era vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo e coordenador do Projeto Armazém Memória. O pesquisador sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC).
Em abril deste ano, Zelic participou de uma audiência pública da Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais na Câmara dos Deputados, que tratou das violações de direitos humanos dos povos indígenas na ditadura militar. Em março, esteve em reunião em Brasília sobre a proteção dos direitos indígenas no país, junto com representantes do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), da Comissão de Paz e Justiça da Arquidiocese de São Paulo (CJP/SP) e da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Recentemente, ele também conversou com a Rádio Nacional e falou sobre o uso da saúde indígena como estratégia da ditadura militar brasileira para ocupar territórios.
Em nome da família, a filha do pesquisador, Helena, destacou ser preciso manter a memória, o trabalho e a luta do pai. “Ele trabalhou de domingo a domingo para colocar no ar centenas de milhares de documentos que pertencem à história dos nossos povos. Achou arquivos que ninguém antes tinha visto e, com isso, fez transformações importantes na nossa democracia. Lutou e enfiou muitos dedos na ferida para que se fizesse justiça, reparação e não repetição. Se rodeou de muita gente, entre indígenas e não indígenas, todos lutadores.”
Spensy Pimentel, antropólogo e professor da Universidade Federal do Sul da Bahia, colaborou ao lado de Zelic com o documento da Comissão Nacional da Verdade sobre os povos indígenas. Ele ressaltou a descoberta de Zelic do Relatório Figueiredo, documento produzido entre 1967 e 1968 pelo procurador Jader de Figueiredo Correia. As mais de 7 mil páginas traziam denúncias de extermínio de populações indígenas, casos de torturas e expulsões de território, muitos desses atos praticados por servidores do governo federal.
“Havia uma resistência por parte das pessoas em reconhecer a existência de ligação entre a ditadura militar e as violações contra os povos indígenas. O Zelic tinha muita autoridade para dizer que a ligação existia e era perfeitamente visível na documentação. Embora seja muito difícil quantificar, dadas as características das violações, ele trabalhou para demonstrar que as agressões foram produtos do autoritarismo, tiveram natureza política e estavam diretamente conectadas com pessoas em Brasília.”
A jornalista Renata Tupinambá, que atua na difusão das culturas e dos artistas indígenas, disse que Zelic tinha uma sensibilidade especial para entender as demandas dos povos originários. E reforçou a importância do projeto Armazém Memória, um acervo digital criado pelo pesquisador para resgatar a memória social, política e das lutas populares no Brasil.
“As próximas gerações precisam ter noção de tudo o que ele fez, do que tornou público no projeto Armazém da Memória. São milhares de documentos mostrando todos os tipos de violações que envolviam a população indígena”, afirmou. “Ele estava sempre escutando as pessoas, resgatando documentos que comprovavam diferentes formas de violência e que eram importantes para demarcação de terras indígenas em diferentes partes do Brasil. Sempre compartilhava os documentos de coração aberto, buscando ajudar a todos. O trabalho de Zelic fez e fará a diferença na vida de muitas comunidades”.
O Ministério dos Povos Indígenas lamentou, em nota, a morte de Zelic. Segundo a pasta, ele estava trabalhando em parceria para a “retomada de estudos e grupos de trabalhos que preservavam o processo e a importância de uma Comissão da Verdade Indígena”. O ministério reforçou que vai continuar a dar voz às ideias do pesquisador.
A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) também emitiu uma mensagem de pesar e disse que um dos principais legados do pesquisador foi tornar públicas “centenas de páginas escritas de documentos sobre violações de direitos contra os povos originários”, destacando o trabalho recente de Zelic a respeito da tragédia humanitária no Território Indígena Yanomami e exigir investigações sobre crimes cometidos entre 2019 e 2022.
O Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi) lamentou “a partida precoce” e agradeceu o legado deixado pelo pesquisador. “Era um ser de luz, sempre ajudando com generosidade, sempre pensando na justiça, nas causas maiores. É uma perda para o Brasil, sobretudo no momento em que o país tenta lidar com as tragédias provocadas por um governo genocida”.
O Cimi divulgou nota onde, além de destacar momentos da biografia de Zelic, agradeceu a a ele por sua luta pela causa indígena e falou em orgulho por ter trabalhado ao seu lado. “O Cimi se orgulha por tê-lo como parceiro na luta pelos direitos dos povos indígenas. Pudemos contar com sua presença, alegre e entusiasmada, no Congresso em que celebramos nossos 50 anos. Deixamos a Marcelo o nosso carinhoso e fraterno agradecimento”.
O velório será realizado nesta quarta-feira (10), pela manhã, no Cemitério Congonhas, no Jardim Marajoara, zona sul da cidade de São Paulo.
* matéria alterada para atualização das informações do velório.
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