Em 1996, 21 sem-terra foram mortos pela PM do Pará; sob Bolsonaro, número de conflitos fundiários é o maior em 10 anos
Este sábado é um dia de reflexão sobre as lutas da classe trabalhadora brasileira e o papel das instituições do Estado, como, por exemplo, o das polícias. Há 25 anos, no dia 17 de abril de 1996, a Polícia Militar (PM) do Pará promoveu uma das mais graves e impunes chacinas contra trabalhadores rurais. Os 155 policiais militares que participaram da emboscada, assassinaram, brutalmente, 21 camponeses no município de Eldorado do Carajás, no sudoeste do Pará, e somente dois deles foram condenados. Os demais nem sequer foram localizados. O crime continua impune e enche de sangue a história da luta pela democratização do acesso à terra no País.
Em matéria publicada no site, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) conta que, em março de 1996, cerca de 3,5 mil famílias sem-terra ocuparam a Fazenda Macaxeira porque representantes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) garantiram a elas a desapropriação da área para a reforma agrária em razão de essas terras, localizadas em Curionópolis, serem improdutivas. O artigo 184 da Constituição Federal garante a destinação de terras improdutivas para a reforma agrária.
Mas em abril daquele ano, o cenário mudou. Apareceu um suposto laudo que considerava a propriedade produtiva, beneficiando o latifundiário que se dizia dono da fazenda. Em protesto, mais de 1,5 mil camponeses começaram, no dia 10 de abril, uma marcha pela Rodovia BR-155 com destino a Belém. Os trabalhadores questionavam a veracidade do laudo e tentavam pressionar as autoridades públicas. No dia 17 de abril, próximo a uma área de Eldorado dos Carajás conhecida como “curva do S”, foram cercados por 155 policiais militares. A marcha acabou ali, com gritos de pavor, choro e muito sangue de lavradores. A chacina ficou conhecida mundialmente como Massacre de Eldorado dos Carajás.
O cenário da chacina
Levantamento do site Monitor do Oriente dá conta de que, em 1999, uma publicação do MST relatava o que havia ocorrido. Um dos trechos do documento dá conta de que “a federação dos fazendeiros reuniu com o governador e o secretário de segurança e levou diversos presidentes dos sindicatos dos fazendeiros da região de Marabá para exigir maior repressão sobre o MST e entregaram uma lista de 19 pessoas que deveriam desaparecer para ‘voltar a paz” na região. Na lista estavam todos os coordenadores do MST no Estado do Pará”, denunciava o texto.
De acordo com o documento, “durante as negociações, com mediação do Instituto de Terras do Estado do Pará,o governo do Pará prometeu assentar 3.500 famílias e o envio de doze toneladas de alimentos e setenta caixas de remédios para o acampamento. O prazo combinado passou e as promessas não foram cumpridas”. Com isso e mais o suposto laudo de que a fazenda era “produtiva”, no dia 10 de abril, cerca de 1.500 famílias iniciaram uma marcha de protesto na direção de Belém, situada a 800 km do acampamento.
Seis dias após o início da marcha, os trabalhadores rurais acamparam na Rodovia PA-150. Eles esperavam o envio de alimentos e um ônibus para o resto da viagem, conforme havia sido prometido em novas negociações. Entretanto, na manhã do dia 17, o envio foi cancelado. Em vez de alimentos, o governo Almir Gabriel (PSDB) deu ordem para matar. A ação partiu dos então presidente do Instituto de Terras do Pará, Ronaldo Barata, e Secretário de Segurança Pública do Pará, Paulo Sette Câmara. Este último declarou, após o crime, ter autorizado o “uso da necessária, inclusive atirar”. Os sem-terra ouvidos pela imprensa, na época, contaram que os policiais chegaram ao local lançando bombas de gás lacrimogêneo e atirando nas pessoas: havia homens, mulheres, crianças e idosos na marcha.
“Com o pretexto de desobstruir a rodovia, os policiais iniciaram a chacina. Sob comando do major José Maria Pereira de Oliveira, chegaram, de um lado da rodovia, 68 policiais armados, com duas escopetas, quatro metralhadoras e cinquenta fuzis e revólveres. No lado oposto, chegaram 200 homens com metralhadoras e revólveres sob comando do coronel Mário Colares Pantoja, esses chegaram lançando bombas de gás lacrimogêneo. Segundo o MST, nenhum policial estava com a devida identificação”, detalha a matéria do Monitor do Oriente.
O primeiro a ser assassinado, segundo o Monitor do Oriente, foi um trabalhador rural surdo, que não correu por não ter ouvido o barulho da PM e levou um tiro no pé e, depois, outro na cabeça. Um dos últimos a serem mortos foi o líder do MST, Oziel Pereira, com apenas 17 anos. Ele se refugiou numa casa, mas foi caçado como bicho, encontrado, algemado e arrastado pelos cabelos até o ônibus da PM. Seu corpo apareceu no Instituto Médico Legal (IML) com um tiro na testa, a queima-roupa. O legista Nelson Massini, que fez a perícia dos corpos, declarou, na época, que houve pelo menos 10 vítimas com tiros na nuca e na testa, executadas à queima-roupa, e que sete lavradores foram mortos por instrumentos cortantes como foices e facões. No local, morreram 19 trabalhadores sem terra, com 37 tiros. Outros 68 lavradores ficaram feridos. Outros dois faleceram no hospital.
No início de maio de 1996, o fazendeiro Ricardo Marcondes de Oliveira, de 30 anos, depôs, responsabilizando o dono da fazenda Macaxeira pelas mortes. Ele o acusou de ter pago propina para a PM matar os líderes dos sem-terra. Ele mesmo teria sido procurado para contribuir na coleta. O dinheiro seria entregue ao coronel Mário Pantoja, comandante da PM de Marabá, que esteve à frente do massacre. Nenhum fazendeiro ou jagunço foi indiciado no inquérito.
Uma semana depois do crime, após a intensa repercussão nacional e internacional, o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) criou o Ministério da Reforma Agrária e indicou o então presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Raul Jungmann, para o cargo de ministro. José Gregori, que na época era chefe de gabinete do então ministro da Justiça, Nelson Jobim, declarou que “o réu desse crime é a polícia, que teve um comandante que agiu de forma inadequada, de uma maneira que jamais poderia ter agido”, ao avaliar o vídeo do confronto.
Ainda segundo apuração do site Monitor do Oriente, o gerente da fazenda confirmou que os fazendeiros da região ordenaram o massacre, entretanto nenhum foi indiciado. “Em maio de 2012, dos 155 policiais denunciados por terem atuado no caso, apenas o coronel Pantoja e o major José Maria Pereira de Oliveira foram condenados — o primeiro a 228 anos e o segundo a 158 anos de reclusão. O governador do Pará, Almir Gabriel, e a cúpula do governo do estado foram isentados de qualquer responsabilidade”.
O coronel Pantoja cumpria prisão domiciliar , mas faleceu em 11 de novembro de 2020 por complicações relacionadas à Covid-19. O MST informa que o Pará é a unidade federativa com histórico de liderança em assassinatos de lavradores, lideranças populares e conflitos de terra.
Pará lidera assassinatos por conflitos de terra. Hoje, além do agronegócio e
madeireiros, empresários da mineração e energia seguem matando lavradores
O massacre dos 21 trabalhadores sem-terra ganhou manchetes nacionais e internacionais. Passados 25 anos, poucos são os avanços no campo da reforma agrária na região. As ameaças e ataques aos trabalhadores rurais, antes promovidos por latifundiários do agronegócio, são realizados agora também por empresários de outros setores, como os da mineração e da energia.
De acordo com o monitoramento realizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), 320 trabalhadores e lideranças foram assassinadas no Pará entre 1996 e 2019. O estado lidera o ranking nacional de conflitos por terra. Nesse mesmo período, outros 1.213 receberam ameaças de morte, 1.101 foram presos pela polícia, 30.937 foram vítimas do trabalho escravo e 37.574 famílias foram despejados em decorrência de decisões judiciais.
A grilagem continua impune e protegida pelas polícias. Dezenas de lideranças do MST, movimentos sindicais, religiosos e ambientalistas foram vítimas da violência no campo no Pará, dentre elas, Onalício Barros, Valentim Serra, José Dutra da Costa, José Pinheiro Lima, Dorothy Stang, José Claudio e Maria, Jane Julia, Dilma, Carlos Cabral, Raimundo Paulino, Ronair Lima, Fernando Araújo, padre Josimo Morais Tavares, então coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Araguaia-Tocantins, e muitos outros em todo o território brasileiro.
Tito Moura, da direção do MST no estado, afirma que o conflito no campo sempre foi latente na região, sobretudo no sul e sudeste do Pará, e são fruto da herança colonialista que ainda vigora no Brasil. O dirigente do MST classifica o massacre como uma tentativa de calar os camponeses da região. Desde 1996, o caso que mais se aproximou, em termos de violência, do ocorrido em Carajás foi a Chacina de Pau D’Arco.
Em maio de 2017, durante após o golpe de Estado aplicado pelo vice-presente Michel Temer, 16 policiais civis e militares mataram dez trabalhadores sem-terra que ocupavam a Fazenda Santa Lúcia, no município de Pau D’Arco, no Pará, com a justificativa de cumprimento de mandados judiciais no local.
Novos contornos da violência no campo
Tito Moura lembra que as respostas das autoridades ao Massacre de Eldorado dos Carajás, como a criação da Delegacia de Conflitos Agrários e a Ouvidoria Agrária, ocorreram depois da repercussão internacional do caso.
Os conflitos no campo, explica Moura, ganharam outro formato a partir do golpe de 2016, que depôs a ex-presidente Dilma Rousseff, e da posse de Jair Bolsonaro (sem partido) à presidência.
“Depois do governo Bolsonaro, quando foi quase extinta a ouvidoria, o conflito se acirrou na região. Há vários relatos de pessoas que sofrem violências. O MST não recuou enquanto movimento de massa. O que repensamos foi, justamente, redobrar os cuidados necessários para continuarmos lutando”.
Próximo ao palco do Massacre, novos conflitos agrários surgiram e vêm fazendo vítimas. “De quatro anos para cá, foram assassinadas algumas lideranças em Parauapebas [cidade no sudeste do Pará]. Nós desconfiamos de uma ligação entre pistoleiros e um consórcio de fazendeiros da região”, diz Moura.
“Esse consórcio de fazendeiros conta com uma milícia própria que despeja sem terra, assassina trabalhador, joga agrotóxicos em cima dos nossos acampamentos. São diversas formas de ameaças”, afirma. Moura teme que, depois do fim da pandemia, as ameaças aos trabalhadores rurais voltem a se acirrar na região.
“Depois da pandemia, com a fome que o povo está passando, não tem outro lugar para as pessoas irem a não ser para as ocupações de terra. Vai ter conflito, com certeza. Não tem um INCRA que funcione, não tem um governo que funcione, não tem uma ouvidoria agrária que funcione. Temos que estar muito atentos porque o governo está disposto a ir para o conflito, a armar a pistolagem para assassinar trabalhador na região”, alerta o dirigente estadual do MST.
Números sobre assassinatos no campo e ameaças no Brasil
Andréia Silvério, da Coordenação da Executiva Nacional da CPT, explica que as ameaças e violências aos povos do campo acontecem de diversas maneiras no Pará e em todo o país, e que o poder público tem se omitido de mediar e prevenir os conflitos.
“Multiplicam-se denúncias de ameaças e diversos tipos de violência, como pulverização aérea de agrotóxicos sobre assentamentos populares, exploração indevida do território, despejos ilegais. O governo Bolsonaro, criminosamente, sucateia órgãos como INCRA, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), e paralisa a reforma agrária”.
Segundo dados da CPT, desde 1985, quando a comissão iniciou a publicação do caderno “Conflitos no Campo Brasil”, 1.501 casos de assassinatos foram registrados em todo o país. As vítimas incluem indígenas, posseiros, quilombolas, pescadores, agricultores, ribeirinhos, sem-terra e lideranças religiosas. O número inclui, ainda, 250 vítimas de massacres.
Já o total de massacres no campo de 1985 a 2020 chegou a 51. “Além disso, em 2020, 159 pessoas foram ameaçadas de morte, 35 sofreram tentativas de assassinato e mais de 30 mil famílias foram ameaçadas de serem retiradas dos seus territórios, tanto pelo poder público, quanto pelo poder privado”, pontua Silvério.
“Muitas perderam suas casas em plena pandemia. Tivemos um aumento de mais de 30% nas ocorrências de conflitos por terra, a maioria na Amazônia legal”.
O primeiro ano da gestão de Jair Bolsonaro, em 2019, foi o que registrou o maior número de conflitos no campo dos últimos 10 anos, com um total de 1.833 ocorrências registradas. Em 2018, foram registradas 1.489 ocorrências.
O número de assassinatos no campo apresentou um aumento de 14% em 2019 (32) em relação a 2018 (28). As tentativas de assassinato, por sua vez, passaram de 28 para 30, e as ameaças de morte de 165 para 201.
Novas frentes de ataque
Para Ayala Ferreira, da direção nacional do MST, o massacre não encerrou um ciclo de conflitos na luta pela terra e pela reforma agrária nessa região, que apenas ganhou novas proporções.
“Há um avanço da fronteira agrícola e minerária na região Norte do país. Há um avanço da apropriação e privatização da terra, sobretudo das terras públicas, que poderiam ser destinadas para a reforma agrária e para a demarcação de terras indígenas e quilombolas”, explica.
“Atrelado a isso, vemos essa desconstrução de todos os mecanismos que poderiam ser adotados para se avançar na política de reforma agrária. É um bloqueio proposital para favorecer o agronegócio, o latifúndio oligárquico, a mineração. Para favorecer os grandes projetos que tendem a se expandir na região em função do momento econômico e político do país”.
“Há um esforço de transformar o Brasil nesse grande fornecedor de matérias primas, de commodities agrícolas e minerárias para dar conta das necessidades do mercado internacional. O problema do conflito do campo se agravou porque não há uma agenda positiva para os sujeitos que lutam pela terra aqui na região”, pontua.
“Ao contrário, há cada vez mais uma negação desses direitos, de criminalização daqueles que ousam se organizar, se mobilizar para lutar pelos seus direitos”.
Para o professor e dirigente estadual do MST no Pará, Batista Nascimento Silva, o acordo entre o agronegócio e o judiciário tem permitido que os trabalhadores tenham seus direitos violados. “Nossas pressões, nesse momento, estão se dando mais por meio da mídia, para tentar barrar as ações de despejo forçadas – mesmo na pandemia – na nossa região”.
O que diz o Incra?
Questionado pela reportagem do Brasil de Fato acerca dos avanços da reforma agrária na região sul e sudeste do Pará, o Incra disse:
“Em 17 de outubro de 1996, foi criada a Superintendência Regional do Incra no Sul do Pará – SR (27), com sede em Marabá (PA) e mais 4 Unidades Avançadas, localizadas nos municípios de Conceição do Araguaia, São Félix do Xingu, São Geraldo do Araguaia e Tucuruí. Desde então, foram criados 447 projetos de assentamento em 39 municípios da região. Somando-se os projetos criados antes de 1996, temos um total de 514 assentamentos. Atualmente, existem 72 mil famílias assentadas pelo Programa Nacional de Reforma Agrária, numa área total de 4,6 milhões de hectares.
Diversas políticas públicas vêm sendo implementadas pelo Incra na região. Uma delas é a concessão de créditos rurais para assentados. Somente em 2020, foram aplicados R$17 milhões nas várias modalidades do Crédito Instalação. A titulação é outra ação que tem sido priorizada. No ano passado, o Incra Sul do Pará emitiu 21.675 documentos titulatórios para produtores assentados, sendo 1.175 de caráter definitivo. Essas medidas garantem a propriedade definitiva dos assentados sobre suas parcelas rurais, permitindo o acesso às linhas de crédito e minizando conflitos no campo.
O Projeto de Assentamento 17 de Abril, em Eldorado dos Carajás, é uma das áreas que estão em processo de titulação. Nos próximos dias, o Incra irá ao assentamento para se reunir com os assentados e solucionar pendências com vistas à titulação”.
Reprodução dos sites Brasil de Fato, Monitor do Oriente e edição do Jornal Brasil Popular