Para as gerações que estão tendo a responsabilidade de fazer a história na transição do século XX para o XXI, pouca coisa do que tem acontecido como novidade é de fato percebida como um fato histórico. Mas basta uma consulta às lupas das ciências humanas e sociais sobre essa realidade para se perceber que ousadias de todas as ordens têm acontecido. Tomando o processo civilizatório como referência, diríamos que há ousadias progressistas e conservadoras, o que implicaria em avanços e recuos de concepções, ideologias, direitos e práticas humanitárias.
Na perspectiva dos direitos e das práticas humanitárias, e de sua relação com os valores democráticos, uma novidade importante desse período especialmente configurada no século XXI é a assunção de mulheres à condição de chefes de Estado. Nesse contexto, 20 mulheres assumiram o posto máximo em seus países, o que representa 10 por cento de países dirigidos por mulheres. Em princípio parece pouco, mas é preciso compreender as várias lutas por emancipação e autonomização feminina ao longo do século XX em todo o globo terrestre e a sua necessária coroação com direitos políticos e sociais (nem sempre conquistados) para se ter uma ideia do que esse valor representa.
As tensões, embates e conflitos, especialmente reforçados a partir das lutas libertárias da década de 1960, tenderam à garantia dos direitos reivindicados na Europa e na América de um modo geral (ocidente), enquanto que na Ásia, África e Oceania (oriente) o movimento foi o contrário. Salvo raríssimas exceções, o dispositivo ideológico utilizado nestes para justificar a “repressão” ao que as mulheres lutavam para conquistar foi a religião. Por outro lado, as mudanças ocorridas no ocidente a partir das conquistas feministas refletiram desde o comportamento vestuário até a ocupação de postos executivos em grandes corporações, passando pela ressignificação sexual e pela reconfiguração familiar.
E mesmo que tudo isso represente muito, num mundo em que a família e, por antecedência, a mulher foram a primeira forma de propriedade privada, como observou Friedrich Engels na consagrada obra A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, de 1884, há um espaço social que ainda não foi devidamente ocupado pelas mulheres: o poder de Estado. Por este, entenda-se aqui todos os espaços de poder político, executivos e legislativos, nacionais ou subnacionais. Isso nos remete à ideia de que o século XXI será ainda momento de tantas outras lutas emancipatórias da condição feminina.
De todo modo, o que o século XXI nos apresenta com relação ao poder máximo de chefe de Estado precisa ser geopoliticamente analisado.
A tabela abaixo mostra as mulheres e os lugares onde elas ocupam o poder hoje. São 12 mulheres na condição de chefes de Estado, mas esse quadro poderia conter 14 mulheres, caso as presidentes Dilma Rousseff, do Brasil, e Park Geun-Hye, da Coréia do Sul, não tivessem sofrido em 2016 questionáveis processos de impedimento. Na tabela abaixo, as mulheres que deixaram recentemente o posto de chefe de Estado.
MULHERES QUE OCUPARAM O PODER DE CHEFE DE ESTADO ATÉ RECENTEMENTE | |||||||
NOME | PAÍS | REGIÃO | CONSERVADOR/ DIREITA/ LIBERAL | SOCIAL-DEMOCRATA | ESQUERDA/ CENTRO ESQUERDA | ||
Dilma Rousseff | Brasil | América do Sul | X | ||||
Cristina Kirchner | Argentina | América do Sul | X | ||||
Portia S. Miller | Jamaica | América Central | X | ||||
Kamla P.-Bissessar | Trinidad e Tobago | América do Sul | X | ||||
Catherine Samba-Panza | República Centro-Africana | África | X | ||||
Helle T.-Schmidt | Dinamarca | Norte Europeu | X | ||||
Ewa Kopacz | Polônia | Leste Europeu | X | ||||
Park Geun-Hye | Coréia do Sul | Ásia Oriental | X | ||||
Para melhor visualização espacial dessas atuações no globo, o mapa abaixo, produzido pela rede de notícias BBC é bastante ilustrativo.
Fonte: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/01/150112_governos_mulheres_gch_cc. Reportagem de 13/01/2015, acessada no dia 14/03/2017.
O que se verifica nessas informações? O primeiro destaque é para a disposição espacial dos governos dirigidos por mulheres. Partindo do velho continente, tivemos nesse período 11 países dirigidos por mulheres (o mapa mostra apenas 10), sendo 5 no leste europeu, 4 na Europa Central e 2 no norte europeu. Desse total, 9 mulheres ainda continuam governando. A América do Sul vem em segundo lugar com 4 mulheres governantes, sendo que três delas já não estão mais no cargo, incluindo a presidente brasileira, Dilma Rousseff. África e Ásia são duas mulheres, respectivamente, sendo que uma em cada continente, também respectivamente, já não governam. E, por fim, há uma mulher governante na América Central que também já deixou o poder.
Então, é possível perceber que a Europa é o grande palco da participação feminina recente no poder de Estado. Mas uma outra informação muito importante diz respeito ao perfil político-ideológico dos governos em questão, o que vai nos mostrar que tipo de composição sócio-política foi necessária para que essas mulheres chegassem ao poder. Assim, foram 9 dirigentes associadas a partidos conservadores liberais de direita, das quais 6 na Europa, 2 na África e 1 na Ásia. Três delas são social-democratas, sendo 2 da Europa (apenas 1 do norte europeu, onde a social-democracia tem forte tradição) e 1 da América do Sul. Por fim, 6 são de centro-esquerda, sendo 3 da América do Sul, 1 da América Central, 1 da Ásia e 1 da Europa Central. Não temos a informação partidária de duas chefes de Estado.
Assim, sobre as mulheres que ocuparam o poder de Estado no mundo recente, é possível dizer que: 1) apesar da maturidade da luta social na Europa e de sua forte tradição social-democrata, as mulheres que estiveram no poder lideraram composições políticas conservadoras de direita; 2) as composições político-partidárias que levaram as mulheres ao poder no continente americano foram hegemonicamente de esquerda; e 3) fazendo a possível associação entre a social-democracia e a centro-esquerda, o mundo dirigido pelas mulheres nesse começo de século XXI está precisamente equilibrado, sendo 9 de perfil conservador liberal de direita e 9 de perfil social-democrata e centro-esquerda.
Adão Francisco de Oliveira é historiador e sociólogo, doutor em Geografia, professor-pesquisador da UFT/Porto Nacional, onde coordena o OPTE – Observatório de Políticas Territoriais e Educacionais e é ex-secretário de Educação do Tocantins.
____________________