O Movimento Social de Mulheres Evangélicas do Brasil (Mosmeb) protocolou, na semana que passou, no Ministério Público do Rio de Janeiro (MP/RJ), uma representação criminal contra a produtora MK Music, pelo crime de apologia, no clipe da canção ‘A Voz’, da cantora gospel Cassiane, lançado no dia 17 de julho, no canal do youtube da produtora.
O clipe mostra cenas de uma mulher sofrendo violências físicas, psicológicas, patrimoniais e familiares, mas, que, resignada e fiel a sua crença, não denuncia o marido agressor. Ao contrário, ela sai de casa, deixando um bilhete para ele dentro de uma Bíblia com os dizeres: “Reconhece a voz de Deus. Deixa ela estremecer o seu coração. O timbre Santo do Senhor há de te curar, pois Ele é a voz que restaura a vida. Oro por você. Perdoo você”.
Em vez de fazer sucesso, o clipe com a encenação de que a vítima perdoa o agressor, que fica impune, causou revolta entre às evangélicas e cristãs. Organizadas em um evento remoto (live), cerca de 70 ativistas de 70 coletivos evangélicos, atuantes nas cinco regiões brasileiras, debateram o conteúdo da produção e decidiram representar judicialmente a MK Music.
Para Daniela Leão, da equipe de Advogadas do Mosmeb, o clipe “incorre no crime de apologia à agressão na modalidade de defesa do criminoso e de seus atos, previsto pelo Código Penal (CP) e agravado pela Lei 11.340/2006 por dirigir-se contra a mulher”. Com relação ao CP, as advogadas afirmam que a encenação na qual a vítima perdoa o agressor e este fica impune aos crimes cometidos, caracteriza uma defesa do criminoso; situação que incorre no crime de apologia, previsto no artigo 287, do Código Penal – que trata de fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime.
“_ Apologia se relaciona a um crime que já foi cometido, em que alguém parabeniza, defende, elogia ou saúda o ato ou a pessoa autora dele de forma pública. Faz apologia quem propaga como benéfico fato ou conduta criminosa que já ocorreu, criando perspectiva positiva do crime ou do criminoso”, argumentam as advogadas do Mosmeb.
No documento, elaborado coletivamente, elas citam também o art. 8º, da Lei Maria da Penha, que prevê que, nos meios de comunicação, é necessário “coibir os papéis esteriotipados que legitimem ou exarcebem a violência doméstica e familiar”.
Na opinião das advogadas, “o que se vê retratado na peça publicitária é exatamente o oposto do que dispõe esse dispositivo legal”, razão pela qual, além de denunciarem a produtora pelo crime de apologia à agressão, elas exigem da gravadora a retratação ao público-alvo, as evangélicas.
Repercussão com milhares de deslikes e denúncias
A mobilização das evangélicas contra o clipe, repercutiu nas redes sociais da produtora, que recebeu uma enxurrada de deslikes (reprovações) – e de denúncias. Mesmo diante da reprovação das evangélicas, a produtora se negou, em nota inicial, a retirar o clipe do ar, argumentando que ele estaria em consenso com a proposta da gravadora. Para as advogadas do Mosmeb, o ato de recusa da produtora em rever o conteúdo reclamado, oferecido ao mercado gospel, “configura a intenção de dolo”.
Posteriormente, diante de milhares de comentários negativos, a produtora excluiu o primeiro clipe e postou outra versão, mesmo assim, dúbia. Nesta, embora exiba uma mulher apanhando, mostra ela denunciando o agressor que, por sua vez, é preso. Mas, ao final, mostra o reencontro dela com o marido agressor, sem deixar claro, se houve punição, de fato.
“_Ainda que o clipe tenha sido retirado ou bloqueado posteriormente, o crime de apologia foi consumado, uma vez causou um profundo transtorno da paz pública (bem jurídico tutelado por essa previsão criminosa) seja no meio evangélico, seja para o público em geral”, afirmam as advogadas.
Deliberações do Mosmeb
As evangélicas analisaram cada cena do clipe, e, revoltadas com as consequências que o conteúdo pode trazer à vida das mulheres das organizações religiosas, definiram, entre outras questões, gravar um vídeo didático identificando a violência doméstica e suas consequências; escolher estratégias para romper com o silenciamento das organizações religiosas protestantes em relação às vítimas de violência doméstica, principalmente, mulheres negras; exigir o fortalecimento da rede de proteção à mulher em situação de violência com previsão de orçamento pelos poderes executivo, legislativo e judiciário; cobrar das igrejas a criação de projetos de enfrentamento à violência contra a mulher; bem como formar líderes das organizações religiosas protestantes, para auxiliarem vítimas de violência doméstica a procurarem a rede de proteção.
No vídeo pedagógico, produzido pelo Mosmeb, que já circula nas redes sociais, as evangélicas mostram as situações de violência física, moral, patrimonial, psicológica e simbólica contra a mulher, contidas no clipe da MK Music: “A abordagem do clipe só reforça a estrutura de violência que oprime as mulheres evangélicas”, diz um trecho do vídeo em que as ativistas evangélicas declaram não concordar com o modo operacional de muitas igrejas de apenas orientar as vítimas a orar e não denunciar.
As evangélicas, ao contrário, orientam as mulheres a denunciar seus agressores. Para elas, a cantora Cassiane “deveria usar a influência que tem no meio evangélico não para reforçar essa estrutura de opressão, mas para divulgar os canais de denúncia e a importância de as mulheres não silenciarem”.
Na visão da missionária Diana Gilli Bueno, o Mosmeb fez o vídeo pedagógico para que a mulher soubesse realmente do que se tratava cada agressão retratada no clipe “A Voz”. “A música, muitas vezes, envolve as pessoas e é aí que, às vezes, fica difícil de enxergar ou entender uma violência em uma peça publicitária”, afirma Gilli, jornalista do Mosmeb.
O que é o Mosmeb
Segundo a professora e pastora Wall Moraes, o Mosmeb surgiu a partir da indignação de mulheres evangélicas, diante do que chamam de “romantização” da violência. “Nós do Mosmeb nos levantamos para dizer não à violência contra as mulheres, as crianças e adolescentes dentro de nossas igrejas”, afirma a pastora.
“O movimento, explica ela, quer dar visibilidade ao repúdio à violência e à situação de omissão das igrejas e líderes religiosos diante da alarmante condição de que 40% das mulheres vítimas de violência doméstica se declaram evangélicas”. Refere-se ela, a pesquisa da teóloga Valéria Vilhena, realizada em 2009, sobre a violência contra as mulheres cristãs e evangélicas, que deu origem ao livro “A Igreja sem voz – análise de gênero da violência doméstica entre as mulheres evangélicas”, publicado em 2011.
Conforme a pastora, não é possível manter a cultura de que o agressor não tem culpa pela violência cometida, pois está perturbado por Satanás. “É imperioso que seja retirada das mulheres evangélicas a responsabilidade pela transformação de vida do agressor”, cobra.