O professor da U. Nacional e experto em conflito armado assegura que houve modificações sem consultar a contraparte e qualifica a implementação como “um desastre”. Ademais, crê provável que a Colômbia esteja entrando num novo ciclo de guerra
A quase 5 anos da firma dos acordos de paz, sua implementação atravessa um momento crítico. Enquanto o governo Duque insiste, principalmente ante a comunidade internacional, em que está cumprindo e indo além do pactuado, desde diferentes fontes se tem criticado a hostilização por parte do governo e seu partido às instituições criadas como resultado dos acordos, assim como o lento avanço nas reformas sociais contempladas neles.
Colombia+20 falou com Francisco Gutiérrez Sanín, professor da Universidade Nacional de Colômbia e um os mais destacados expertos no conflito armado colombiano, acerca da implementação dos acordos de paz, tema que tratou em seu último livro, intitulado ¿Un nuevo ciclo de guerra en Colombia? [Um novo ciclo de guerra em Colômbia?], no qual sustenta que o Estado colombiano não está cumprindo com os acordos e alerta sobre os riscos que esse descumprimento acarreta para o país.
Francisco Gutiérrez Sanín apresentará uma conferência digital sobre este tema na quinta-feira 16 de setembro às 6:00 p.m. Será a conferência inaugural de Argumentos, ciclo acadêmico organizado por Fragmentos, Espaço de Arte e Memória e a Direção de Patrimônio Cultural da Universidade Nacional de Colômbia. O evento será transmitido através das páginas de Facebook destas duas instituições.
Em seu livro ¿Un nuevo ciclo de guerra en Colombia?, publicado em 2020, você sustenta que o Estado e, em particular, o governo atual estão descumprindo o Acordo de Paz. De fato, diz que este “já está morto”, uma afirmação à qual resistem, ainda que por distintos motivos, tanto defensores como detratores dos acordos entre o Estado e a guerrilha das FARC. Poderia nos explicar as razões que sustentam este balanço tão pessimista sobre a implementação dos acordos?
É uma avaliação que não tem nada a ver com o pessimismo. O acordo, tal como se negociou em Havana, como resultado do consenso alcançado entre as duas forças que firmaram, já não existe. Isto se deve ao [fato de] que houve uma mudança nas regras do jogo. O Estado colombiano, não só o governo de turno, se atribuiu a capacidade de modificar o acordo multilateralmente. As alterações à Jurisdição Agrária e à Jurisdição Especial para a Paz-JEP, realizadas pelo Congresso e permitidas pelas decisões da Corte Constitucional, assim o evidenciam: foram feitas modificações por fora do negociado em Havana e sem levar em conta à contraparte.
Por outra parte, a implementação é um desastre. Quantos hectares, por exemplo, foram entregues aos campesinos? Ou pensemos em qual tem sido a posição do Governo frente à Comissão da Verdade e a JEP, dois instrumentos que não puderam estraçalhar só porque a comunidade internacional os blindou. Ou bem, pensemos no que passou com os acordos de participação política, ou na quantidade de líderes sociais e ex-combatentes assassinados. Agora, e isto também eu o disse explicitamente no livro, todo o acima dito não significa que o acordo como programa de transformação social esteja morto.
Você assinalou que para analisar a decorrência do processo de paz é fundamental considerar o papel que o uribismo tem desempenhado e que isto é chave para poder desenvolver uma política séria e consistente em defesa do acordo. Quais são as razões da oposição programática do uribismo ao processo de paz?
Há três dados sobre o uribismo que há que levar em conta para avaliar seu papel em relação ao acordo. O primeiro é que Álvaro Uribe durante seus dois governos lançou iniciativas para conversar com as Farc. De fato, como estabeleceu Daniel Coronel, Uribe afirmou que uma conversação com a guerrilha teria que ser diferente de uma negociação com os paramilitares. Essas iniciativas não frutificaram. Porém o ponto é que aí havia uma oportunidade para aplicar um princípio de sensatez. O grande problema, e este é o segundo ponto, é que no uribismo se aninham grupos de interesses muito fortes que sob este governo têm um poder quase de veto sobre as iniciativas críticas relacionadas com a paz, principalmente em dois temas: a terra e a verdade e a reparação.
Em relação à terra, no uribismo estão explicitamente representados, e não por casualidade, os interesses agrários mais conservadores, mais violentos, mais associados com o conflito armado. Por isso o uribismo tem hostilizado constantemente a restituição de terras e tudo o relacionado com as transformações agrárias. E também, por atração mútua e como posição programática, o uribismo tem sustentado que os agentes do Estado devem estar acima ou protegidos de distintas acusações. Daí que, em termos de verdade e de justiça transicional, se tenha oposto de maneira muito exacerbada ao acordo.
E, finalmente, há um terceiro tema: entre 1960 e hoje a sociedade colombiana sofreu uma transformação muito profunda, no sentido de que as lógicas de ódio e os chamados a assassinar ao adversário político foram saindo do jogo retórico. Hoje em dia é muito difícil encontrar um só exemplo de alguém na esquerda, no centro ou na direita não uribista que diga ou que sugira que está bom matar. Por outro lado, no uribismo alguém encontra esses discursos com muita frequência. O uribismo resistiu a essa transformação, a passar pelo arco do quinto mandamento, e estamos vendo as consequências. As vimos na Paralisação Nacional deste ano, por exemplo, em que se disparou uma dinâmica homicida, com justificativas abertas de ataques contra a população civil, das quais o uribismo não recuou um só passo. No contexto da implementação de um Acordo de Paz, isso é catastrófico, pelo tipo pessoal envolvido e pelo tipo de atos que se legitimam.
Se viramos a atenção para as forças políticas que têm defendido o acordo, que erros têm cometido? Ou, simplesmente, que tarefas pendentes têm para conseguirem recuperar o que resta dos acordos? Você assinalou que há várias fragilidades e inconsistências na retórica pacifista…
Desde o princípio, o discurso pacifista teve muitos erros. Uma primeira questão é a incrível irresponsabilidade de ter lançado o plebiscito. Essa irresponsabilidade desnuda uma profunda incompreensão do voto uribista e das bases sociais uribistas. Havia que interpretar em que consistiam esse voto e essas bases sociais. A ideia, um pouco trivial, consistia em que esse voto era pura falsa consciência. Porém havia muito mais que isso. Inclusive hoje, quando essa corrente está reduzida a sua mínima expressão e em meio à deslegitimidade que tem produzido sua própria dinâmica homicida, há um voto uribista muito fiel que toca entender e conhecer.
Um segundo problema é que o discurso pacifista também tinha sua certa contabilidade por dupla partida e uma tendência a jogar com os projetos institucionais para obter certos resultados. Isso gerou à contraparte uma série de demandas genuínas que havia que atender e que até o sol de hoje não se atendeu. Uma terceira questão é que havia uma apelação que tinha um conteúdo de classe brutal no qual a gente como nós, a gente plus, se falava entre ela do bonita e simpática que ia ser a paz, e enviava aos territórios pessoas de seu próprio setor social, muito jovens muitas vezes, a lidar com líderes sociais e com atores que haviam toureado em mil praças, o que redundou numa interação muito pobre com eles e numa pedagogia da paz muito pobre.
E um último problema é que houve um diagnóstico alegre, frívolo, não profissional de onde estavam as bases sociais da paz. Havia uma argumentação que ainda persiste e que afirma que os grandes votantes a favor da paz iam ser, ou foram, os setores da chamada ‘Colômbia profunda’ e os setores mais golpeados pela violência. Resulta que isso soa muito bonito, porém não confere com a evidência. O que havia, sim, era uma dinâmica pacifista enorme nas grandes cidades. Porém não houve um discurso que construísse uma conexão explícita entre o Acordo de Paz e a Colômbia urbana.
Apesar do estado crítico em que estão os acordos, que dividendos tem deixado a paz e porque é importante insistir em sua defesa? Para muitos colombianos, depois de tudo, pareceria que este não é um tema prioritário e que pouca importância tem que o Estado não cumpra sua palavra com uma organização, como as Farc, que tem muito pouco, quase nenhum, apoio popular, e por outro lado uma dívida humanitária muito alta com o país…
Eu diria que [há] quatro coisas. A primeira é que o acordo gerou a desmobilização de um grupo de especialistas em violência muito grande, muito preparado e muito capaz; de fato, disparado o mais capaz que atuou no conflito colombiano. Um segundo dividendo são os efeitos indiretos. A implementação gerou a criação de numerosas agências estatais que pedalam com entusiasmo. Por exemplo, em relação com a agenda agrária, a Unidade de Restituição, a Agência de Renovação do Território e a Agência Nacional de Terras. Não é casual que nunca, ou pelo menos só muito raramente, tenhamos visto escândalos de corrupção nessas agências.
Um terceiro dividendo muito importante são as entidades de justiça transicional, que conseguiram em seu conjunto um apoio internacional que redunda nas possibilidades de paz em Colômbia. E uma quarta questão que é que o Acordo de Paz abriu muitos canais para a participação cidadã em distintos cenários, rurais e urbanos. O problema é que querem truncar essa participação. Com os níveis de violência e bloqueio institucional envolvidos perfeitamente podem chegar a fazer isso. Porém seria uma tragédia terrível para o país.
Você tem assinalado que é provável que estejamos presenciando o fim da guerra de guerrilhas tal e como a conhecemos. E, no entanto, alerta que o país pode estar se deslizando a um novo ciclo de guerra política. De novo, e por distintos motivos, não só os destratores do acordo como também seus defensores se apressaram a descartar este cenário. Por que, na sua opinião, poderia ser equivocado caracterizar as novas violências que estamos vivendo como um simples fenômeno criminal e narco? Em que sentido e por que razões se poderia abrir um novo ciclo de guerra política [com todas as suas letras]?
Um novo ciclo de guerra não seria uma remobilização das Farc, assim como a guerra contra insurgente, na conjuntura da Frente Nacional, não foi uma simples remobilização das guerrilhas liberais ou dos grupos armados conservadores. Foi uma coisa distinta. Num momento de uma paz frustrada, uma paz com muitos descumprimentos, diferentes especialistas na violência buscaram novas formas de se organizarem. Na conjuntura atual, é claro que os dois governos envolvidos no processo, porém sobretudo o de Duque, empurraram de volta de volta para a montanha muitos quadros intermediários que sabem muito da guerra, que sabem combater, que têm os contatos em território, que têm o pessoal e que já estão muito ativos. Pensemos em pessoas como Gentil Duarte, Romaña ou como o Paisa.
Agora, bem, calculemos: quantas pessoas há agora ativas em armas? Umas 3.000 ou 4.000 do ELN, pelo menos umas 4.000 ou 5.000 das dissidências das Farc, incluindo as de Gentil Duarte e a Segunda Marquetalia; e outras 3.000 ou 4.000 pessoas em grupos herdeiros dos paramilitares. Então neste momento já há em Colômbia aproximadamente umas 10.000 pessoas em armas. Dizer que é altamente improvável que estejamos entrando num novo ciclo de guerra é simplesmente anti evidente.
O único contra argumento frente a esse panorama consiste na ideia de que todos estes grupos são combinações de narcos. Porém este argumento não funciona. Ainda que todavia não têm uma formulação de livreto, estes grupos têm seu discurso político. Obviamente, estão muito financiados pelo narcotráfico e não descarto, aliás, que muitos desses grupos [por exemplo, alguns setores das dissidências de Duarte ou da Segunda Marquetalia] já estejam centrados na captura de rendas. Porém isso não é uma mudança em relação às três ou quatro últimas décadas. E o panorama geral é que estes grupos estão construindo uma agenda muito menos ecumênica e muito mais localista e orientada às especificidades do território que reflete formas de combate e de discurso de uma nova geração. Em síntese, a guerra contra insurgente dos sessenta não foi a repetição d’A Violência, e agora estamos vendo as condições para que se formem dinâmicas armadas que não são uma repetição da guerra contra insurgente, porém que se baseiam, sim, em grande medida no velho pessoal.
Ao longo dos últimos anos temos visto o fortalecimento de novas formas de autoritarismo em diferentes lugares do mundo, paralelamente com a já fartamente alertada crise da democracia liberal. Lhe preocupa que a Colômbia possa tomar também uma guinada abertamente autoritária nos próximos anos?
O uribismo claramente tem tido uma posição ambígua frente à democracia. Tem sido tipicamente antiliberal, porém pró competição. Tem estado a favor das eleições, porque nas eleições sempre ganhou. Porém agora, quando se tornou um grupo de minorias, poderíamos perfeitamente ter aí um fator conducente a uma guinada autoritária. Por outra parte, o uribismo sempre se opôs aos pesos e contrapesos e sobretudo se opôs ao poder judiciário. Essa oposição se tornou cada vez mais exacerbada e virulenta.
Também tem um programa para a transformação e o disciplinamento do aparelho educativo. Isso também poderia se converter em fator para um cenário de guinada autoritária real. Isso no contexto colombiano seria novo. A outra opção, que é o próprio cenário que tivemos nas últimas décadas e que é muito colombiano, seria a continuação de um sistema político com pesos e contrapesos, porém por sua vez com níveis de violência cada vez mais altos e saturado com discursos de ódio e de homicídio, que é o caminho para a destruição em massa de seres humanos. A pergunta é como os colombianos vamos fazer para nos esquivar desses dois cenários, que eu diria são os mais prováveis se continuamos como vamos.
(*) Por Julián Harruch Morales
Tradução > Joaquim Lisboa Neto
Do site El Expectador