A obra Raízes do Brasil de Sergio Buarque de Holanda, originalmente publicada em 1936, analisa elementos fundamentais presentes na cultura brasileira que remontam ao nosso passado colonial e escravagista. Em um dos capítulos, o autor analisa a cordialidade como traço marcante que impera em nossas relações sociais.
Diferentemente do que se costuma pensar, o homem cordial não é propriamente gentil ou educado. Cordial tem origem na palavra latina core que significa coração, ou seja, trata-se de uma atitude muito mais guiada pelos sentimentos (bons ou ruins) do que pela racionalidade.
Tal comportamento seria um entrave para a formação de um Estado moderno no Brasil, pois ao invés de uma organização racional baseada na eficiência, impessoalidade e respeito às normas, temos um Estado marcado pelo patrimonialismo, em que o público se confunde com o privado. Cargos e funções seriam distribuídos conforme vínculos pessoais e largamente utilizados para a obtenção de privilégios, vantagens e favores.
Quase cem anos após a publicação deste célebre clássico, algumas cenas que viralizaram nas redes sociais nas últimas semanas nos remetem a este traço de nossa cultura. Em uma delas, um casal se recusa a cumprir as orientações de saúde pública de um servidor e o humilha, com a esposa dizendo que seu marido não seria um cidadão, mas um “engenheiro civil, formado, melhor que você”(sic). Em outra, um desembargador se utiliza do seu cargo para não cumprir o decreto sobre o uso de máscara e também desrespeita o guarda municipal que lhe aplicou uma multa.
Ainda que esses acontecimentos tenham provocado intensas críticas nas redes sociais, infelizmente não nos surpreendem porque fazem parte do cotidiano da sociedade brasileira. A diferença é a de que agora são filmados e expostos à opinião pública. São a demonstração de que o status social proveniente de algum cargo, função ou mesmo instrução formal é ainda um demarcador de privilégios que confere uma suposta superioridade a quem o possui, julgando-se acima da lei. E também, há de se supor, acima da própria pandemia.
A cordialidade aí se manifesta tanto pelo uso da famosa “carteirada”, quanto no descaso pela vida das demais pessoas, que podem sofrer as consequências de um comportamento imprudente, ou como diria Sergio Buarque de Holanda, irracional. Fenômeno que também é reconhecido por frase que nos é tristemente familiar: “você sabe com quem está falando?”, símbolo do “jeitinho” e da “carteirada”, que o antropólogo Roberto da Matta classifica como expressão de uma sociedade profundamente desigual que ainda não superou seu passado de privilégios advindos de uma estrutura escravocrata.
O aspecto positivo desse tipo de comportamento ser visto e debatido por um grande número de pessoas é o de que pode suscitar importantes reflexões sobre nossa realidade. Reflexões que até então restringiam-se aos ambientes acadêmicos. Pode ser um passo essencial para a necessária construção de uma sociedade mais justa e verdadeiramente democrática.
Maria Emília Rodrigues é professora da área de Humanidades da Escola Superior de Educação do Uninter