A coluna Travessia Didivera Revoada, de Joaquim Lisboa Neto, no Jornal Brasil Popular, homenageia os 142 anos de nascimento do Mestre Guarany. Segundo perfil do Dicionário de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Mestre Guarany foi um escultor autodidata, natural de Santa Maria da Vitória, que viveu mais de 100 anos. Ele entalhava santos, oratórios domésticos, altares e figuras de proa (carrancas).
Passou a assinar F. Guarany nos anos 1960. As suas carrancas tiveram grande repercussão, entre críticos de arte, como objeto artístico, nos anos 1980. Sua trajetória foi escrita por Paulo Pardal.
Este “segundo artigo” intitulado “O mago da alma do Velho Rio e de sua gente [II]”, faz parte de um conjunto de 12 miniartigos de mesmo título, de autoria do jornalista e ex-deputado estadual e federal pelo PT-BA, Emiliano José, publicados no Jornal da Bahia em 9 de fevereiro de 1984. Confira os artigos a seguir.
O MAGO DA ALMA DO VELHO RIO E DE SUA GENTE [II]
Por: Emiliano José
Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany, o mundo todo dele já falou. Começou como imaginário e terminou como o carranqueiro mais famoso do Brasil. Há alguns anos, o Comitê Internacional para o Estudo das Figuras de Proa [Comité Internacional pour l’Ètude des Figures de Proue] – órgão sob o patrocínio da Unesco, solicitou uma exposição de suas carrancas para inaugurar um museu flutuante. Dele, Carlos Drummond de Andrade já falou com muito carinho, assim como Osório Alves de Castro, Paulo Pardal e Clarival do Prado Valladares. Mas, aos 102 anos, ele permanece abandonado em Santa Maria da Vitória, sua terra natal.
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Pois é.
Quem diria que as carrancas antropomórficas de Francisco Guarany saltassem das águas do Médio São Francisco para a contemplação europeia e fossem hoje o motivo de interesse mundial?
Nada de surpreendente, no entanto.
Ele soube captar não só a alma do navio como também e principalmente a alma da gente que vive à beira das águas do velho Chico, já agora despojado de seus símbolos míticos e religiosos, mas conservando no coração uma semente de magia que lhe dá força para viver.
Ou sobreviver.
Carlos Drummond de Andrade
[extraído do livro Carrancas do São Francisco, Paulo Pardal, ed. Martins Fontes, SP, pág.253]
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Atualmente, ele é lembrado, e insistentemente, por persistentes jovens da Casa da Cultura Antonio Lisboa de Morais, de Santa Maria da Vitória, que está promovendo naquela cidade, nesta semana, a IV Semana de Arte e Cultura, na qual, pela segunda vez, o principal homenageado é Guarany. Monstros, as carrancas de Guarany conseguiram espantar das águas do Rio Corrente, do São Francisco e de tantos outros. Passados 100 anos de vida, ele só não conseguiu vencer a indiferença do governo pela arte popular. O repórter Emiliano José esteve em Santa Maria da Vitória participando como conferencista da IV Semana de Arte e Cultura, e falou com Guarany. Dessa conversa esta reportagem.
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O MAGO DA ALMA DO VELHO RIO E DE SUA GENTE [III]
Por: Emiliano José
“Foi na proa da “Boa-Paisagem” que apareceu pela primeira vez a figura de uma mulher mirando o rio. Chico Biquiba me disse: amigo Cipriano, tenho uma encomenda do capitão Zé Custódio de Juazeiro de uma carranca diferente. Penso em muitos assucedidos e um me vem na cabeça. Era a história de Siana Branca. Foi uma noite no Alto do Menino Deus, eu imaginava olhando prau céu: o que irá acontecer no dia em que a Arca de Noé navegando, for se aportar nas Três Marias? De repente – e me benzi – uma cuereira veio por cima da minha cabeça e foi sentar-se no juazeiro. Apagaram-se as luzes do firmamento e tudo ficou escuro. Foi passando um resplendor se abriu e vi o desencanto. A ave virou uma mulher e veio rezar por seus pecados. Vi suas feições e elas ficaram direitim nos meus olhos tal qual Chico Biquiba fez a cabeça da “Boa-Paisagem”.
A história da barca “Boa-Paisagem”, relatada assim, é do velho Cipriano Acendedor-de-Lampião, rico personagem de “Porto Calendário”, não menos rico romance de Osório Alves de Castro, contador de assombrosas histórias das beiras do São Francisco, especialmente das terras distantes de Santa Maria da Vitória, a 989 quilômetros de Salvador, adormecida às margens do rio Corrente, afluente do rio São Francisco. E os olhos de todos devem ficar atentos quando o velho Cipriano falar de Chico Biquiba – Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany.
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O MAGO DA ALMA DO VELHO RIO E DE SUA GENTE [IV]
Por: Emiliano José
Não se trata de uma figura de ficção, mas do mais famoso carranqueiro do país, nascido no dia 2 de abril de 1882, em Santa Maria da Vitória. As carrancas que povoaram o rio São Francisco e seus afluentes neste século foram, em sua maioria, feitas por Guarany, abandonado hoje num leito, na cidade natal, ao lado da mulher, Benvinda da França Guarany, de 94 anos, já cega. Como a cabeça da barca “Boa-Paisagem”, Biquiba fez dezenas de outras carrancas que, nas proas dos barcos, singravam as águas do São Francisco, espantando os monstros e as assombrações.
Frade se casa com a negra Biquiba
Guarany costuma contar que o bisavô dele, José Dy Lafuente, espanhol de Barcelona, teria sido frade jesuíta de um convento de Salvador, de onde teve que fugir, provavelmente em decorrência da perseguição que os religiosos daquela companhia sofriam no Brasil. Dy Lafuente ocultou-se na casa de uma negra africana, que “tinha esse nome de Biquiba”, como informou o próprio Guarany, em depoimento a Paulo Pardal, um dos poucos biógrafos dele, ao lado de Clarival do Prado Valladares.
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O MAGO DA ALMA DO VELHO RIO E DE SUA GENTE [V]
Por: Emiliano José
Dy Lafuente tomou-se de amores pela negra Biquiba, e com ela refugiou-se no interior da Bahia, em Capim Grosso, hoje Curaçá, às margens do rio São Francisco, nas proximidades de Juazeiro. Ali, Dy Lafuente fez-se professor. “Era no tempo que ninguém sabia ler, só quem sabia ler era padre. Então ele ficou lá em Capim Grosso, ensinando os meninos”, diria Guarany, em 1973, a Paulo Pardal, cujo livro “Carrancas do São Francisco” foi editado pelo Serviço de Documentação Geral da Marinha. Nesse mesmo depoimento, ele acrescentaria:
— Aqueles fazendeiros, aqueles homens terríveis que tiravam o fio de cabelo da barba e servia de documento, então acolheram ele, ele ficou muito bem estimado por esses fazendeiros, os treme-treme daqueles tempos.
Plácido roubou Maria, nasceu Cornélio
Do amor de Dy Lafuente com a negra Biquiba, nas terras do Capim Grosso, nasceu Plácido Biquiba Dy Lafuente. Em Juazeiro, moço, Plácido roubou Maria, que logo passou a se chamar Maria Biquiba. O mais velho dos filhos de Plácido e Maria foi Cornélio Biquiba Dy Lafuente, que se casou aos 21 anos, por volta do ano de 1865, evitando com isso o recrutamento para a Guerra do Paraguai na condição de solteiro.
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O MAGO DA ALMA DO VELHO RIO E DE SUA GENTE [VI]
Por: Emiliano José
A mulher de Cornélio, Marcelina do Espírito Santo, era neta de índia. Os dois foram morar em Porto, hoje Santa Maria da Vitória, e Mestre Cornélio construía barcas, sempre debaixo de um grande tamarindeiro. De Mestre Cornélio, Osório de Castro também fala em Porto Calendário:
“Mal o sol apontava naquele sábado amormaçado, os trabalhadores de Mestre Cornélio vieram se encostando: Flávio Rocha, meio mestre; Camilo Donato, Timóteo Divino e Joaquim Demétrio, enxozeiros; Aristides Estrela Preta e Augusto Tobó, serradores; Anselmo Gambão e José Quimama, machadeiros-lavradores. Como de costume, chegavam para catarem cavacos, Sá Catarina Ferro e a velha Flávia, rendeira”.
Nasce Francisco, o imaginário
Francisco foi o último dos seis filhos de Mestre Cornélio, apelidado Guarany por ser bisneto de índia. A Paulo Pardal ele conta que o apelido pegou de tal forma “que o jeito foi eu assinar por Guarany”; e todos os filhos assinam por Guarany. Em 1898, Mestre Cornélio morreu, e Guarany, já em 1899, com 17 anos, começa a trabalhar como imaginário, e logo depois como marceneiro. Mestre de imaginária, ele teve: foi João Alves de Souza, da cidade da Barra.
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O MAGO DA ALMA DO VELHO RIO E DE SUA GENTE [VII]
Por: Emiliano José
De carrancas, nunca. “Nasci com o dom”, responde até hoje quando lhe perguntam sobre seu aprendizado como carranqueiro. “Isso pode ensinar? Isso é bem que Deus dá ao indivíduo”. As imagens de santo ele abandonou logo – “não dava pra se viver”. Ele largou o trabalho de imaginário, e continuou trabalhando como carpinteiro, marceneiro, tanoeiro. “O que é certeza é que lutei muito pela vida, nos meus princípios”, costuma dizer.
Foi com 19 anos de idade que ele fez a sua primeira figura de proa. Era um busto de negro para a barca Tamandaré, de Conrado Correia de Almeida, pela qual recebeu exatos 12 mil réis. A segunda carranca foi para a mesma barca, já nas mãos de outro dono. A terceira foi para a barca Americana, de Luis Antônio Miranda, que chamou a carranca de Caboclo D’água.
Aos 81 anos, a descoberta de si
A dureza da vida não permitiu que Guarany se limitasse a apenas produzir carrancas — fazia de tudo um pouco: barris para transporte d’água, dornas para guardas cachaça, móveis e madeiramento para telhados, entre tantas outras atividades. Em 1922 chegou a se mudar para Bauru, em São Paulo, onde passou dois anos e para onde quase se mudou definitivamente.
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O MAGO DA ALMA DO VELHO RIO E DE SUA GENTE [VIII]
Por: Emiliano José
Ninguém sabe precisamente, nem ele, quantas carrancas saíram das mãos de Guarany de 1901 até o início da década de 40, quando as condições de navegação impostas pelo Regulamento do Tráfego Marítimo praticamente determinaram o fim das barcas no São Francisco. Paulo Pardal estima que, no período, Guarany produziu cerca de 80 carrancas.
Com o fim da construção das barcas, Guarany não fez figuras de proa durante cerca de dez anos. Na primeira metade da década de 50, foi descoberto por Antônio Laje, a quem vendeu meia dúzia de peças, que foram para a coleção Vasconcelos Maia. Só em 1963, já com 81 anos, é que Guarany passou a assinar suas obras. Foi quando entendeu a importância de sua obra.
Guarany aprendeu a ler e escrever com padres. Nunca foi de falar muito, gosta mais de ouvir. Mas foi orador da Filarmônica 6 de Outubro, em Santa Maria da Vitória, por muitos anos, militou na UDN e desempenhou, durante 39 anos, o cargo de Juiz de Paz de Santa Maria da Vitória. Foi também, pelo longo período de 35 anos, medidor do nível das águas do rio Corrente, ou, em outras palavras, observador pluvio-fluviométrico do Ministério da Agricultura. Em 1968, e disso ele se orgulha até hoje, recebeu o diploma de membro correspondente da Academia Brasileira de Belas Artes.
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O MAGO DA ALMA DO VELHO RIO E DE SUA GENTE [IX]
Por: Emiliano José
Espanta maus espíritos
As figuras de proa têm uma longa história. Já na Antiguidade, no Egito, embarcações apresentavam na proa uma saliência que era a estilização de uma caveira de touro, e o touro parece ter sido um elemento importante no misticismo dos povos primitivos. Nas sociedades rurais, as figuras de proa sempre foram cercadas de fortes componentes místicos.
No São Francisco, criou-se um tipo de figura de proa inédito em todo o mundo: olhos esbugalhados, misto de homem, com suas sobrancelhas arqueadas, e de animal, com sua expressão feroz e sua cabeleira tipo juba leonina, na feliz definição de Paulo Pardal.
Guarany nomeou suas carrancas sob a influência da mitologia indígena, às vezes; em outras ocasiões, apoiou-se em nomes de animais antediluvianos, cujas fotografias, vistas em jornais e revistas, devem ter impressionado Guarany. Há carrancas com os nomes de Mastodonte, Galocéfalo, Megatério e Medostantheo, por exemplo. Da mitologia indígena, vieram várias outras carrancas: Igatoni, Brutuan e Capelobo, este um índio que vira lobisomem. Há também Curupema, a índia que vira onça, e Curupan, marido de Curupema.
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O MAGO DA ALMA DO VELHO RIO E DE SUA GENTE [X]
Por: Emiliano José
O elemento plástico mais marcante da escultura de Guarany é o tratamento que dispensa às cabeleiras das carrancas, sempre espessas, abundantes, cobrindo quase todo o pescoço. Apesar de presbiteriano, Guarany comunga da forte carga mística da região. Num depoimento a Deocleciano de Oliveira, ele fala sobre o Caboclo D’Água:
— Dois cidadãos que tinha aqui, de Cabrobó para baixo, mataram um Caboclo D’Água e enterraram na terra. O delegado de Cabrobó quis processar eles. É o mesmo o formato de um homem negro, sem nenhum cabelo, de pele enrugada, escamosa.
Na outra ocasião ele conta que, tendo ido ao mato para fazer um molinete de moenda, viu “a cabeça de um menino, marrom escuro, cabeça pelada, parecendo cabeça brilhosa, dentadura alva na cara”. Ele garante: “Tinha forma de gente e parecia uma criança de quatro para cinco anos e notei que tinha uma espécie de barbatana nos braços”.
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O MAGO DA ALMA DO VELHO RIO E DE SUA GENTE [XI]
Por: Emiliano José
Tristeza de um artista
Assustei-me um pouco com a cena: na cama, duas figuras pequenas, debaixo das cobertas rotas, na casa pobre, da rua Othon Vieira [Rua da Lagoa-Rua dos Doidos], em Santa Maria da Vitória. Eram Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany e sua mulher, Benvinda da França Guarany. Biquiba quase não se levanta da cama mais, Benvinda também não.
Foi um diálogo penoso, arrastado, porque os seus 102 anos já pesam bastante. Nem sempre a linguagem sai perfeitamente articulada e lhe é difícil precisar datas ou nomes.
Lembra-se com melancolia do tempo em que Santa Maria da Vitória era apenas um pequeno amontoado de casas à beira do Rio Corrente. Não se esquece de Osório Alves de Castro, a quem qualificou de “meu amigo” e lamenta o abandono a que sempre foi relegado pelas autoridades.
— No outro mundo eu serei aposentado – ironiza sem sorrir.
Das carrancas ele fala com intimidade, e por isso, com simplicidade. “Chegava um dono de barca, pedia uma carranca, eu fazia, ele me pagava um dinheirinho e pronto”.
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O MAGO DA ALMA DO VELHO RIO E DE SUA GENTE [final]
Por: Emiliano José
E o comprador dizia como seria a carranca?
— Nada disso. Eu fazia com a minha vontade. Eu imaginava na cabeça ou então fazia de uma figura que eu tinha observado.
Ainda tem lembrança da escravidão e da República chegando, o povo gostando. Da velhice fala cabisbaixo:
— Não sobrou nada desse tempo todo de trabalho.
Mestre de carrancas ele não teve. De Mestre Cornélio, o pai, ele se recorda como construtor de barcas.
Paulo Pardal, que já escreveu dois livros sobre as carrancas do São Francisco e tem se interessado muito pela obra de Guarany, é tido em boa conta por ele: “Quando eu fazia carranca que ele encomendava, ele pagava”.
Agradeceu a visita cortês:
“Quando se fala com pessoa educada é sempre bom”.
E fez o último protesto do fim da vida:
— O governo me abandonou. Ficou tudo na promessa.
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Transcrição↓ Thaise Diamantino Coelho & Joaquim Lisboa Neto
Biblioteca Campesina, 9 abril 2022.
Com o texto acima encerramos, por este meio, a publicação da reportagem de Emiliano José.
Peça jornalística de raro esplendor, retrata com profundidade nossa arte, nossa cultura, nosso folclore.
As e os santa-marienses expressamos nossos agradecimentos ao bravo jornalista e escritor, parceiro de, ó!, longas datas e de um sem-número de jornadas políticas e culturais.
(*) Por Emiliano José, escritor e jornalista. Doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia [UFBA]. Autor de, entre outros, Lamarca – o capitão da guerrilha [em coautoria com Oldack de Miranda], Carlos Marighella – O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – biografia [2 vols.] e Galeria F [5 vols.]. É membro da Academia de Letras da Bahia, ocupante da cadeira nº 1, cujo patrono é o renomado historiador marxista Luis Henrique Dias Tavares.
(*) Joaquim Lisboa Neto, colunista do Jornal Brasil Popular, coordenador na Biblioteca Campesina, em Santa Maria da Vitória, Bahia; ativista político de esquerda, militante em prol da soberania nacional.