A coluna Travessia Didivera Revoada, de Joaquim Lisboa Neto, no Jornal Brasil Popular, homenageia os 142 anos de nascimento do Mestre Guarany. Segundo perfil do Dicionário de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Mestre Guarany foi um escultor autodidata, natural de Santa Maria da Vitória, que viveu mais de 100 anos.
Ele entalhava santos, oratórios domésticos, altares e figuras de proa (carrancas). Passou a assinar F. Guarany nos anos 1960. As suas carrancas tiveram grande repercussão, entre críticos de arte, como objeto artístico, nos anos 1980. Sua trajetória foi escrita por Paulo Pardal.
Este quarto e último artigo intitulado “O maior dos carranqueiros – Natalício 142 do Mestre Guarany“, do próprio colunista Joaquim Lisboa Neto, finaliza as homenagens. Confira.
O MAIOR DOS CARRANQUEIROS | Natalício 142 do Mestre Guarany
A 2 de abril de 1882, nascia, em Santa Maria da Vitória, Bahia, Francisco Biquiba dy Lafuente Guarany.
Filho de Cornélio Biquiba dy Lafuente e Marcelina do Espírito Santo, ele cresceu apreciando as carrancas que seu pai esculpia para as barcas que singravam as águas dos Rios, Corrente, Grande e São Francisco.
Conhecido nacional e internacionalmente como Mestre Guarany, esculpiu sua primeira carranca aos 19 anos, em 1901, para a Barca Tamandaré, de Conrado Correia de Almeida, personagem Conrado Sessenta no romance Porto Calendário, do também santa-mariense Osório Alves de Castro.
A última carranca ele produziu quando já estava quase centenário, com 97 anos.
Comemorou seu centenário inaugurando, em 1983, uma grande exposição de carrancas organizada pelo Serviço de Documentação Geral da Bahia, em Salvador, posteriormente apresentada nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Recife e Petrolina.
Paulo Pardal, em seu Carrancas do São Francisco, destaca que “dois terços das 90 carrancas genuínas que classifiquei saíram de suas mãos”, graças a, como dizia GUARANY, este “bem que Deus dá ao indivíduo”.
“Na primeira metade da década de 50 — prossegue Pardal — foi descoberto por Antonio Laje, a quem vendeu meia dúzia de peças que foram para a Coleção Vasconcelos Maia”.
Era geralmente ele quem escolhia o motivo para suas esculturas de barca, inspirando-se, inclusive, em figuras como as de um baralho português antigo, no dragão de São Jorge, no leão e no cavalo.
O elemento plástico mais característico de sua escultura era o tratamento que dispensava à cabeleira das carrancas, espessa ou em relevo acentuado, abundante, cobrindo quase todo o pescoço.
Francisco Guarany, que no acima citado Porto Calendário é marca presença como Chico Biquiba, recebeu o Prêmio Revelação, da Associação Paulista de Críticos de Arte [APCA], e uma pensão mensal votada pelo Congresso Nacional, salvando o genial artista popular de difícil situação financeira.
Sobre GUARANY, escreveu a presidenta do Comitê Internacional para o Estudo das figuras de Proa de Paris (França), Anne Bedel:
“Sua obra faz parte do que encontrei de mais belo em minhas pesquisas”.
Louvado por grandes expoentes e críticos de arte de renome internacional, suas carrancas estão expostas nos principais museus do mundo.
Homenageado por Carlos Drummond de Andrade com o poema Centenário, Guarany é, lamentavelmente, em sua terra natal, quase um ilustre desconhecido por parte de considerável parcela da população, principalmente dentre a juventude.
E não tem nada a ver remoer o mantra de que santo de casa não faz milagres.
O problema é que, como diz o escritor Luiz Ruffato, “educação e leitura no Brasil são artigos de luxo”.
Vivemos num país em que apenas treze e meio por cento[!] dos 5.570 municípios possuem Secretaria de Cultura exclusiva e em que sessenta e cinco por cento das escolas não dispõem de bibliotecas.
Em Santa Maria, vida e obra de Guarany estão preservadas nas Bibliotecas Campesina e Eugênio Lyra e em várias edições do jornal O Posseiro.
Como afirma o crítico de literatura e música, ademais de autor de vários ensaios sobre arte, o italiano radicado em Sampa, Lorenzo Mammì no livro de arte A viagem das Carrancas, “[…] Guarany foi um artista moderno, e não dos menores.
Possivelmente, o primeiro artista moderno da arte popular brasileira”.
O gênio das carrancas FRANCISCO GUARANY partiu para mais além do sol no dia 5 de maio de 1985, na mesma aldeia que lhe viu nascer.
Biblioteca Campesina, 2 abril 2024
CENTENÁRIO
Carlos Drummond de Andrade
FRANCISCO BIQUIBA DY LAFUENTE GUARANY
conjurou os seres malévolos das águas.
Com o poder de suas mãos meio espanholas,
meio índias, meio africanas,
totalmente brasileiras.
Das mãos de Guarany surdiram monstros
que colocados na proa dos barcos
protegiam os viajantes contra os terrores do rio.
Eram monstros benignos, conjunção de forças milenares
Enlaçadas na mente de Guarany.
As águas purificaram-se, as viagens
tornaram-se festivas e violeiras.
E ninguém temia a morte, e o louvor da vida
era uma canção implícita no cedro das carrancas.
Os tempos são outros. Onde as carrancas?
Onde os barcos, as travessias melodiosas de antigamente?
O Rio São Francisco está sem mistério e poesia?
A poesia e o mistério pousaram
no rosto centenário de Francisco, irmão moreno
do santo de Assis, também ele miraculoso,
pelo poder das mãos calejadas e criadeiras.
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Pois é. Quem diria que as carrancas antropomórficas de Francisco Guarany, saltassem das águas do Médio São Francisco para a contemplação europeia e fossem hoje o motivo de interesse mundial? Nada de surpreendente, no entanto. Ele soube captar não só a alma do navio como também e principalmente a alma da gente que vive à beira das águas do velho Chico, já agora despojado de seus símbolos míticos e religiosos, mas conservando no coração uma semente de magia que lhe dá força para viver. Ou sobreviver.
Carlos Drummond de Andrade
[extraído do livro Carrancas do São Francisco, Paulo Pardal, ed. Martins Fontes, SP, pág.253]
Para saber mais de e sobre Guarany, aí vão algumas dicas de leitura:
- A mão afro-brasileira [Significado da contribuição artística e histórica – Emanoel Araújo
- O Direito à Memória – O Vale do São Francisco e sua História – CODEVASF
- Carrancas do Sertão – Signos de ontem e de hoje – Elisabet Gonçalves Moreira
- A Época de Ouro do Corrente – Tempos [re]construídos – Avelino Fernandes de Miranda
- Guarany, 80 anos de carrancas – Clarival do Prado Valladares e Paulo Pardal
- Tempo de Reportagem – Histórias que marcaram época no jornalismo brasileiro – Audálio Dantas
- Jurandi e Guarany – Audálio Dantas – Diário Popular, São Paulo, 11 julho 2001
- O mago da alma do velho rio e de sua gente — por Emiliano José — JORNAL DA BAHIA, Salvador, 9 de fevereiro de 1984
- Carrancas do São Francisco – Revista Ciência Hoje das Crianças
- Os Remeiros do Rio São Francisco – Zanoni Neves
- Revista Palavra, ano 1, nº 10, janeiro/fevereiro 2000
- O Velho, a Carranca e o Rio – Rogério Andrade Barbosa
- Carrancas do São Francisco – Paulo Pardal
- Porto Calendário – Osório Alves de Castro
- Amar se aprende amando – Carlos Drummond de Andrade
- Jornal O Posseiro [Santa Maria da Vitória/BA] – várias edições
- Carrancas do São Francisco – Revista Ciência Hoje das Crianças
- Os Remeiros do Rio São Francisco – Zanoni Neves
- Revista Palavra, ano 1, nº 10, Belo Horizonte, janeiro/fevereiro 2000
(*) Joaquim Lisboa Neto, colunista do Jornal Brasil Popular, coordenador na Biblioteca Campesina, em Santa Maria da Vitória, Bahia; ativista político de esquerda, militante em prol da soberania nacional.