Diante da extensão e intensidade da tragédia humana que foram e continuam sendo as enchentes no Rio Grande do Sul, não despertam os menores sorrisos e não têm a menor graça nem as imagens mais insólitas que temos visto, como a do grande navio que subiu no telhado do estaleiro de Taquari, em cujo cais devia estar ancorado, ou a do cavalo que teve de ser retirado da cobertura de um terceiro andar.
Muito tem sido demonstrado da incompetência e da irresponsabilidade do prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, e do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (este com a agravante de ter sido pretendente à Presidência da República na eleição passada), não só na prevenção do desastre como depois nos trabalhos de socorro e reconstrução.
Não por acaso os dois são exemplares quimicamente puros do pensamento de direita que sempre acusa o Estado de ser mau patrão e mau gestor e oferece as simplórias receitas privatistas do neoliberalismo como solução para qualquer desafio de ordem pública.
Com Porto Alegre mergulhada em água e lama, seu prefeito anunciou a contratação da consultoria multinacional Álvarez&Marsal para fazer o projeto de recuperação e reconstrução da cidade. Álvarez&Marsal? Mas não é a mesma que deu um emprego milionário a Sérgio Moro quando ele se demitiu do Ministério da Justiça brigado com Bolsonaro e sem a menor expectativa de ser nomeado para o Supremo? E essa não é uma consultoria especializada e experimentada em matéria jurídica, não em engenharia e urbanismo? Como é que foi escolhida para planejar a reconstrução e, literalmente, a reengenharia de Porto Alegre?
Bem, poderiam responder, a Alvarez&Marsal tem outra experiência brasileira além do emprego dado a Sergio Moro: ela foi escolhida (ou imposta) para planejar a reconstrução da Odebrecht, depois que outra dupla, a Moro&Dallagnol, a reduziu a ruínas. Essa reconstrução exigia um bom trabalho de expertise financeira, equivalente a uma verdadeira obra de engenharia. E também de urbanismo? – poderíamos perguntar.
Uma enorme construção semântica seria necessária para explicar a entrada desse enorme conglomerado empresarial na lama de Porto Alegre, mas é evidente que a desgraça e a urgência do caso foram aproveitadas para a contratação de um bom negócio. Feliz da vida, o prefeito anunciou que a consultoria se dispôs a trabalhar de graça nos primeiros três meses. Em troca de quanto, perguntaríamos, nos próximos três anos?
Talvez a lição política a tirar de toda a tragédia das enchentes de Porto Alegre e outras cidades do Rio Grande do Sul seja a de que esse pessoal neoliberal cheio da onipotência da empresa privada comprovou mais uma vez sua impotência diante de questões de ordem pública e de desafios que só podem ser enfrentados por instituições de propósitos não-lucrativos, como o Estado.
No campo da economia privada, essa lógica pode funcionar tão bem que uma piada clássica, talvez anterior ao arrastão neoliberal do último meio-século, dá um exemplo fulminante:
– Qual é o melhor negócio do mundo?
– Um banco bem administrado.
– E o segundo melhor negócio?
– Um banco mal administrado.
Na economia privada, um banco mal administrado pode ser o segundo melhor negócio do mundo, mas se um Estado e seus instrumentos, como governos e prefeituras, passam a agir com a lógica da empresa privada em busca de lucros, o resultado só pode ser o que está acontecendo no Rio Grande do Sul.
(*) Por José Augusto Ribeiro – jornalista e escritor, é colunista do Jornal Brasil Popular com a coluna semanal “De olho no mundo”. Publicou a trilogia A Era Vargas (2001); De Tiradentes a Tancredo, uma história das Constituições do Brasil (1987); Nossos Direitos na Nova Constituição (1988); e Curitiba, a Revolução Ecológica (1993); A História da Petrobrás (2023). Em 1979, realizou, com Neila Tavares, o curta-metragem Agosto 24, sobre a morte do presidente Vargas.