Segundo Otaviano Canuto, no curto prazo a tendência isolacionista do novo Governo Trump deve gerar um pequeno ganho de PIB, mas acompanhado por muita inflação
Conversamos com Otaviano Canuto sobre as perspectivas das relações do novo governo de Donald Trump com os organismos multilaterais. Otaviano foi vice-presidente do Banco Mundial e atualmente está no Policy Center for the New South.
Como deve ser a relação entre o novo governo Trump e os organismos multilaterais?
Há uma tendência muito forte de deixar em segundo plano a postura globalista, mundialista e multilateralista dos governos americanos do passado em direção a uma postura mais individualista em que os Estados Unidos não vão querer arcar com o ônus que acompanha qualquer exercício de hegemonia. Isso já aconteceu no seu primeiro mandato.
A clara manifestação disso está naquilo que diz respeito ao fluxo de recursos. Por exemplo, Trump exigiu dos parceiros dos Estados Unidos na Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) que eles arcassem com mais ônus e custos da organização.
Isso também vai se refletir na política comercial com países cujas visões não convirjam com a visão de mundo e com a orientação norte-americana. No seu primeiro mandato, embora Trump tivesse uma guerra comercial focalizada na China, nós assistimos a disputas comerciais com países europeus e até com os sócios do Nafta (North American Free Trade Agreement; Canadá e México).
Essa tendência de repartir o ônus com os demais países está mais forte agora, e Trump vai tentar exercitar isso em um patamar ainda maior.
Com relação às negociações multilaterais, a descrença de Trump deve voltar, como já havia ocorrido com os acordos relacionados à prevenção da mudança climática e à saúde.
Na sua avaliação, o ônus do exercício de hegemonia que você mencionou, gerou ganhos ou gerou perdas para os Estados Unidos?
Esse ônus gerou ganhos como hegemonia, mas não necessariamente ganhos econômicos individualizados. É claro que quando a economia mundial cresce, todo mundo ganha. Por exemplo, por mais que a expansão da economia chinesa nas décadas anteriores tivesse significado, na prática, uma transferência de processos industriais das economias avançadas para os países do sul, os Estados Unidos e outros países, que também perderam indústrias, ganharam com a expansão de mercados, a exposição como centros tecnológicos e como beneficiários de produtos mais baratos.
Agora, se você quiser mensurar em termos relativos os ganhos dos países que se beneficiaram economicamente da integração, esse ganho foi particularmente maior nos países do Sul do que nos Estados Unidos, que, juntamente com diversos países europeus, não souberam cuidar bem dos seus perdedores domésticos nesse processo. Se esses perdedores tivessem sido tratados e compensados, os impactos domésticos teriam sido menos desigualitários. Inclusive, são esses perdedores que explicam hoje a ascensão antiglobalista nos Estados Unidos, e em boa parte da Europa, e a vitória de Trump.
Cabe ressaltar que existe uma controvérsia, impossível de ser resolvida de forma analítica e empírica, de que a culpa pelos resultados desiguais da globalização para os Estados Unidos diz mais respeito à mudança tecnológica do que ao comércio, até porque os dois se retroalimentam.
De qualquer maneira, a percepção de que esse resultado se deve à globalização gerou a atitude, muito bem explorada pelos populistas de direita, de que a culpa pela situação terrível vivida pelos filhos das famílias que trabalhavam nas indústrias que foram perdidas para a Ásia veio da globalização. Foi esse pessoal que votou no Trump e que corrobora a atitude mais isolacionista do novo governo.
Em termos práticos, como o novo governo Trump deve se relacionar com os organismos multilaterais?
Por exemplo, o Grupo Banco Mundial tem países que são clientes e países que são doadores. A Associação Internacional de Desenvolvimento é o seu braço que provê recursos de baixíssimo custo, quando não doados, para os países classificados como pobres. Já há algum tempo, há uma pressão dos países doadores para que países de renda média alta, que são considerados bem-sucedidos, como a China e o Brasil, se tornem doadores.
O mesmo acontece com o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird), braço do Banco Mundial que opera com os países de renda média, onde existe uma enorme disputa para se tentar graduar alguns países classificados como renda média alta.
Quando essas instituições aumentam suas escalas e usam o capital existente, elas precisam de um aumento de capital. Desde que eu estou em Washington, eu vi um aumento de capital no início da década passada e outro em 2018. Em termos relativos, o ônus desses aumentos é maior para os países que não tomam dinheiro, como Estados Unidos, França e Japão. O que eu antevejo é que os Estados Unidos passarão a ter uma maior resistência para incorrer no ônus de colocar dinheiro na operação de uma instituição multilateral cujo produto eles não são compradores.
Como Trump conduziu essas relações no seu primeiro mandato?
Em 2018, membros do governo americano ameaçaram deixar os Estados Unidos de fora do aumento de capital do Bird. No frigir dos ovos, houve um acordo, e os Estados Unidos aceitaram participar do aumento, desde que a sua posição privilegiada no banco não fosse colocada em risco.
Essa posição privilegiada implica ter uma participação no banco acima de 15%, sendo que a posição dos Estados Unidos é de 16%. Como para algumas decisões radicais o estatuto do banco exige uma maioria de 85% dos votos, mesmo que os Estados Unidos não sejam capazes de assumir todas as suas decisões, na prática o país possui o poder de veto.
Se os demais países quiserem fazer um aumento de capital no banco sem os Estados Unidos, essa posição fica sob risco. Isso pode ser um contra-incentivo para que os Estados Unidos aceitem que os demais países o contornem em um processo de aumento de capital.
Com relação ao Acordo de Paris, se a decisão de abandoná-lo no primeiro mandato tivesse sido acompanhada por algum tipo de movimento no sentido de “ok, nós não vamos fazer parte do acordo, mas vamos cumprir a nossa política nessa mesma direção”, tudo bem, pois não haveria nenhuma diferença. Contudo, quando os Estados Unidos abandonaram o Acordo de Paris, isso não foi apenas uma negação do multilateralismo, mas também uma negação da agenda que o resto do mundo considera real, importante e prioritária, como a descarbonização.
Como você avalia a tendência isolacionista do novo governo Trump?
Com temor. No curto prazo, os efeitos imediatos da guerra comercial de Trump vão ser sentidos pela Europa, pela China e pelo resto do mundo. Nos Estados Unidos, existe a tendência de que a guerra comercial gere um aumento de PIB, mas como a economia está operando perto do pleno emprego, isso deve dar mais resultado em termos de inflação pelo excesso de demanda. É por isso que não é fortuito que o dólar tenha se valorizado.
Na última segunda (6), o dia começou com uma matéria do Washington Post dizendo que a intenção de Trump seria utilizar as tarifas como instrumentos de ameaça para negociação, e não como uma política tarifária definitiva. Após a divulgação desta matéria, o dólar despencou. Em seguida, Trump apareceu dizendo que a matéria não era verdadeira e que a sua política tarifária é para valer. Com isso, o dólar voltou a subir.
Como os mercados estão antecipando que a política tarifária de Trump pode levar a um aumento muito grande da demanda agregada dentro dos Estados Unidos, tendo como resultado um pouco mais de PIB e muito mais inflação, eles estão antecipando juros mais altos, o que explica a valorização do dólar. Isso pode dar uma impressão enganosa de curto prazo, mas não há como a economia americana melhorar no futuro, em termos de PIB, com essas políticas. Isso porque os Estados Unidos vão tirar recursos econômicos de áreas onde o país é mais produtivo, eficiente e competitivo para colocá-los em áreas que vão substituir importações. Na média, isso não vai gerar ganhos nem para os americanos e nem para o resto do mundo.
No primeiro governo Trump, vários analistas observaram que a guerra comercial com a China ia trazer consequências para a economia americana, como de fato aconteceu. Por exemplo, a agricultura americana nunca mais recuperou o espaço perdido para o Brasil na China, e a indústria manufatureira americana sofreu uma pancada com o aumento de custos das matérias-primas e dos produtos intermediários que eram importados, além das retaliações. Eu me lembro que, na época, Trump fez uma analogia comparando o que ele estava fazendo com a China com uma luta de boxe, onde quem ganha é quem consegue infligir mais danos no adversário. Com essa declaração, ele deu a entender que vencer o adversário era mais importante que uma eventual dor durante a luta. Essa analogia é extremamente perigosa, pois Trump pode achar que o ônus que será gerado pela sua política será compensado por uma vitória americana.
Como você está sentindo as repercussões do novo governo Trump nos Estados Unidos?
Embora a vitória de Trump tenha sido espetacular, já que ela foi além do que se imaginava, as pessoas preferem acreditar que o que ele promete vai ser cumprido. Como ele ainda não perdeu popularidade, ele vai tentar usufruir dessa popularidade para fazer o que prometeu.
Um detalhe importante é que uma das forças da democracia americana é o sistema de pesos e contrapesos, com instituições sólidas, que deram o devido pushback quando houve ameaças de quebra da estrutura democrática. No último dia 6/1, nós tivemos o quarto aniversário da invasão do Capitólio, que, apesar da confusão de 2020, não impediu a confirmação do resultado eleitoral da eleição presidencial e os quatro anos do governo Biden. Ao longo dos últimos anos e até mesmo da campanha, Trump meio que aludiu a possibilidade de vir com mais força contra esses mecanismos de contrarrestação da lei e da ordem vigente. O que ele pode fazer é perdoar os condenados pelo 6/1/2021. Para isso, ele tem margem e a Corte Suprema a favor.
Como Trump, no seu novo governo, não vai ter mais a presença dos que resistiram às suas intenções e aos seus movimentos contra a lei e a ordem vigente, e sim uma malta composta por fiéis que ele construiu ao longo dos últimos quatro anos, e que com certeza vão obedecê-lo naquilo que ele mandar, existe um grande receio de que os mecanismos de salvaguarda institucional não estarão tão fortes e resistentes nos quatro anos que temos pela frente.
Considerando a conversa que tivemos, você gostaria de acrescentar algum ponto a sua entrevista?
A agenda de Trump tem as suas contradições. Há uma contradição enorme, que não é facilmente resolvível, no lado fiscal tributário. Trump vai vir com a extensão definitiva dos benefícios tributários para indivíduos que estavam previstos para terminar agora em 2025. Tanto a Kamala Harris quanto o Biden haviam proposto a continuidade dessas isenções apenas para indivíduos abaixo de um certo nível de renda, mas Trump vem com a proposta de estender e perenizá-las, o que vai significar uma evolução de arrecadação tributária abaixo do previsto. Trump diz que isso vai ser compensado com a receita tributária proveniente das tarifas de importação, mas eu não conheço um economista sério que ache que isso seja possível.
O lado tributário de Trump vai levar a um aumento do déficit público norte-americano, sendo que esse aumento tende a acontecer em uma trajetória de deterioração crescente registrada nos últimos anos, com a conta de juros subindo muito e com os gastos subindo bem mais que a receita.
Pelo lado dos gastos, Trump terá Elon Musk, que diz que vai cortar US$ 2 trilhões de despesas, sendo que não há como fazer isso. Por exemplo, os gastos militares vão continuar aumentando, e por mais que ele corte tudo aquilo relacionado às leis de energia limpa e dos semicondutores do Biden, isso vai ficar longe dos US$ 2 trilhões. Para que ele chegasse nesse valor, ele teria que demitir em massa nas áreas de educação e saúde.
Com relação a desregulamentação, esse talvez seja o único componente da agenda de Trump que tenha menos dissenso. Entre os analistas, há uma tendência em ver um ganho enorme de produtividade, particularmente na área de Inteligência Artificial. Esse, talvez, seja o único aspecto menos dúbio da agenda.
O resto vai depender da intensidade e do quão radical vai ser Trump na sua política comercial. Nos casos óbvios, ele vai ter sucesso nos alinhamentos. O México, certamente, vai cortar o seu papel como um canal usado pelos chineses para escapar da proteção americana, o que, a rigor, não é tão significativo, pois os chineses vão ser proativos. No caso do Canadá, independente de quem suceda Justin Trudeau, o primeiro-ministro do Canadá vir aos Estados Unidos para visitar o futuro presidente na sua casa na Flórida, e não o presidente em Washington, é bem ilustrativo do que tende a ocorrer com o Canadá, que vai se acomodar aos objetivos de Trump. Fora isso, eu não creio que a agenda do Trump consiga intimidar os países a se acomodarem aos seus desejos.
No final, o que importa é a intensidade, o que nós só vamos ver nos primeiros cem dias do governo Trump 2.0.