Multidões de cidadãos em todo o país se somaram na quarta-feira 24 à paralisação contra as reformas orientadas a desregular a economia argentina e a reduzir o tamanho do Estado e seus níveis de intervenção impulsionadas pelo governo do ultra direitista presidente argentino Javier Milei.
Em apenas 45 dias de governo, Milei perdeu vários pontos de apoio na sociedade e se fragilizou a convicção de muitos dos que ainda querem ou necessitam crer nele. O governo não esperava esta adesão à convocatória sindical popular, apelou ao amedrontamento e as ameaças e só conseguiu motivar ainda mais aos manifestantes.
Após a paralisação, que em nível mundial teve uma ressonância muito forte, mudou o humor político da sociedade e se recuou o discurso hegemônico que levou Milei à Casa Rosada, demonstrando que é impossível realizar mudanças estruturais tão regressivas sem forte resistência popular e mantendo a governabilidade.
Sem apoios, o governo se vê na necessidade de retroceder em todo o pacotaço econômico que pretendeu Introduzir na Lei Ônibus. O ministro de Economia, Luis Caputo, anunciou a retirada das propostas sobre retenções, aposentadorias, Lucros, lavagem de dinheiro e outras, para tentar destravar a negociação no Congresso. O projeto de lei mantém a delegação de atribuições legislativas em mãos do presidente, pelo que, se se aprova a norma, poderia tomar essas e outras decisões por decreto.
“Se aprovam as faculdades delegadas, como estão no projeto, o presidente pode mudar toda a ordem socioeconômica sem passar pelo Congresso. E isso significa que pode impor fórmulas previdenciárias, retenções e o que seja por decretos delegados”, precisou o constitucionalista Andrés Gil Domínguez.
O anúncio do ministro de Economia, Luis Caputo, sobre a remoção do capítulo fiscal da Lei Ônibus, provocou imediatas reações desde a oposição. “O anúncio de Caputo: um passo atrás que ainda pode ser uma armadilha”, estampou chamada Página12. Houve um retrocesso do governo, porém ficam as faculdades delegadas, as privatizações e a ameaça sobre o Fundo de Garantia de Sustentabilidade, entre outras graves consequências da Lei Ônibus que segue no Congresso.
Complô interno?
Porém, boa parte do ajuste ainda não se sentiu plenamente, senão que será demolidor em breve em fevereiro e março com brutal aumento do transporte público, da luz e do gás com faturas multiplicadas por oito; eventualmente, uma nova desvalorização e a consequente transferência aos preços. Esse desencontro entre o modelo utópico de um Milei que recebeu o respaldo das urnas, frente aos modelos das corporações de Federico Sturzenegger e Luis Caputo, produz turbulências permanentes.
Porém o verborrágico mandatário –que carece de resposta alguma para os problemas concretos- aparece estranhamente silencioso enquanto a ministra de Seguridade Patricia Bullrich parece disputar o protagonismo do governo. A princípio parecia uma competição com a vice-presidenta Victoria Villaruel, quem apoiou e retwittou uma nota do Financial Times que dizia que “a vice-presidenta está pronta para qualquer coisa”, sugerindo que poderia substituir a Milei.
O presidente percebeu algum tipo de complô e deletou Villaruel dos dois ministérios chave que se lhe haviam prometido, Seguridade e Defesa, e os deu a Bullrich. A competição com Villaruel parece ser coisa do passado e Bullrich desponta com mais e mais protagonismo, enquanto crescem os rumores de que quem toma as decisões não é Milei senão que sua irmã, Karina.
Ataque a Petro
Não parece responsável por suas palavras e atos e do peso que têm como presidente argentino: o governo colombiano chamou a consultas a seu embaixador na Argentina, Camilo Romero, depois que Milei assegurara que o mandatário colombiano «é um comunista assassino que está afundando» ao país.
«O Governo da Colômbia rechaça energicamente essa declaração, que atenta contra a honra do primeiro mandatário, quem foi eleito de maneira democrática e legítima», assinalou a chancelaria colombiana.
“É uma provocação made in USA para tentar desprestigiar a Petro, que trata de exterminar a corrupção institucional em seu país e é um mau exemplo para os planos de Washington para o resto do continente”, assinalou o analista colombiano Camilo Rengifo.
Ameaças ou extorsão
O ultra direitista presidente Javier Milei aprofundou em reunião de gabinete as ameaças contra os governadores provinciais pelos rechaços a distintos pontos de seu projeto de Lei Ônibus, de esgoto do Estado e desregulação econômica, cuja aprovação é incerta. “Vou asfixiar a todos”, ameaçou.
O vice-governador da sulina província de Río Negro, Pedro Pesatti, afirmou que «se o presidente ameaça em deixar as províncias sem os recursos fiscais que correspondem às províncias, como as patagônicas, poderiam deixar ao governo nacional sem petróleo, sem gás e sem energia hidrelétrica».
«Porém chegar a isso seria pôr a Argentina à beira da dissolução nacional ou de uma guerra civil e é o que o presidente deveria considerar antes de se expressar com semelhantes níveis de violência ao utilizar a ameaça como método», acrescentou Pesatti.
Milei pediu a renúncia de Guillermo Ferraro do ministério de Infraestrutura, sendo esta a primeira baixa de um ministro em seu gabinete, acusado de haver vazado uma frase do presidente contra os governadores.
O difícil de qualquer negociação é que os legisladores nunca sabem se o que negociam será depois vetado por Milei. O temor maior é se lhe concedem as faculdades extraordinárias que pediu, não está claro se tudo o que se extraiu do texto nessas negociações não será instalado logo mais por decreto do Executivo.
Numa entrevista com a colombiana Patricia Janot pela CNN em Espanhol, Milei qualificou a paralisação como algo que «nada tem a ver com reivindicações legítimas» e voltou a trazer à tona a dolarização, quanto ao tempo que confessou que não é possível precisar quando vai se reativar a economia. Voltou sobre [a falar] o tema Malvinas –«uma disputa geográfica»- e confiou em avançar numa «convivência pacífica».
«Algo no que esteja disposto a ceder?, perguntou Janot. «Em nada. A liberdade não se negocia», lhe respondeu. “Não vou estar aliado com comunistas, não vou estar aliado com o BRICS, meus modelos são Ocidente, Israel e Estados Unidos». E voltou a negar a necessária intermediação do Estado nas relações de comércio exterio. «No debate [eu] disse que as pessoas podem negociar com quem queiram, eu sou liberal».
Fim do deslumbramento
O deslumbramento com a figura do anarcoliberal ultra direitista Javier Milei parece ter chegado a seu fim, após os disparates pronunciados no Foro de Davos e a resposta contundente dos argentinos a seus planos de venda do país com a greve geral e as marchas da quarta-feira última, onde se somaram mais de um milhão e meio de pessoas.
A primeira etapa de sua presidência durou 45 dias, onde quis impor o Decreto de Necessidade e Urgência a já chamada Lei Ônibus, que se evaporou quando no Congresso se revelaram os dados reais do apoio que o presidente pode esperar para os conteúdos mínimos de sua mega proposta legislativa, pomposamente chamada “Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos”.
Os apoios parlamentares para a lei nunca ocorreram; e certamente não ocorrerão. O projeto necessitou de centenas de mudanças, cortes e revisões, porém ainda hoje naufraga sem destino. O parecer do governo somou 55 firmas estampadas num papel em branco, sem mostrar o texto final. Porém 61% desses subscritores abriram o guarda-chuva e manifestaram não avalizar a proposta e deixaram suas “dissidências” por escrito.
A pátria não se vende
A paralisação da quarta-feira foi a expressão dos que saíram a defender seus direitos, ante o discurso ultra direitista que intenta converter em mercadoria até os sentimentos e leva um desprezo implícito a tudo o que concirna a Pátria. Os argentinos marcharam com a palavra de ordem de “a Pátria não se vende”, que também é “eu não me vendo”, deixando claro que nem tudo é mercadoria, que é a mensagem de Milei.
Não foi um fracasso só para o presidente senão que também para a ministra de Seguridade, Patricia Bullrich, de seu “protocolo de seguridade”, que impede que a multidão caminhe pelas ruas e de suas intentonas de provocar aos manifestantes.
E, para piorar, as Nações Unidas advertiram a Patricia Bullrich que seu protocolo antimarchas e o capítulo de Seguridade da Lei Ônibus são compatíveis com os padrões internacionais.
A paralisação-marcha da quarta-feira 24 foi a resposta popular às políticas que em só 45 dias empobreceram às maiorias, reduzindo liberdades fundamentais, convertendo em proibitivos direitos como a moradia ou a saúde, disparado a corrupção, favorecido a um punhado de magnatas e levado o país à beira do abismo financeiro e social.
As referidas políticas foram materializadas principalmente nas dez medidas do ministro de Economia Luis Caputo, um mega decreto presidencial e o envio da Lei Ônibus ao Congresso, que impactaram rapidamente na queda do poder aquisitivo dos trabalhadores, com 120% de desvalorização e a liberação dos preços de alimentos, serviços e combustíveis.
O catedrático e economista Horacio Rovelli aponta que os nomes do Círculo Rojo [Vermelho] são os mesmos, são os que se organizam principalmente na Associação Empresária Argentina [AEA], cujos vice-presidentes são, entre outros, Paolo Rocca [Techint], Héctor Magnetto [Clarín], Alfredo Coto [Supermercados COTO].
São os da União Industrial Argentina [UIA], presidida por Daniel Funes de Rioja [representante da ditadura civil-militar na OIT], cujo estudo jurídico redigiu o capítulo sobre legislação do trabalho do DNU; os da Câmara de Exploração e Produção de Hidrocarbonetos [CEPH], cujo presidente é Carlos Ormachea [nomeado por Techint, Vista e Pampa Energia].
E também os da Câmara de Comércio Argentino-Norte-americano [Amcham], cujo presidente é Facundo Gómez Minujín, CEO de JP Morgan na Argentina, Uruguai, Bolívia e Paraguai [banca entre cujos investidores está o fundo BlackRock, principal detentor de dívida privada em nosso país].
Ademais, o ministro de Economia, Luis Caputo, lançou uma mensagem-ameaça aos governadores estaduais no marco do debate pela Lei Ônibus: disse que estão delineando «todas as partidas estaduais serão bloqueadas imediatamente se algum dos artigos econômicos for rechaçado».
Enquanto isso, a Justiça do Trabalho declarou inválidos seis artigos do DNU de Milei. Se trata dos que impediam o exercício do direito de greve e de assembleia. Também eliminavam a ultra atividade dos convênios.
A paralisação foi sentida fortemente na indústria e deixou colocado entre os dirigentes sindicais o debate sobre como seguir; porém também na Casa de Governo. A massiva mobilização convocada pelas centrais operárias irritou sobremaneira ao presidente, cuja primeira reação foi tentar minimizar a contundência da medida.
A segunda, advertir que não negociará o feroz programa de ajuste. E a terceira, uma mostra concreta de que está disposto a endurecer sua intransigência: horas depois do protesto sindical, descartou ao titular da Superintendência de Serviços de Saúde, ente chave para o mundo sindical, porque regula as obras sociais e pré-pagas, Enrique Rodríguez Chiantore, substituindo-o por Gabriel Oriolo, ex-gerente de uma empresa de medicina privada.
Federico Sturzenegger, assessor de desregulamentação econômica, começa a ganhar um lugar cada vez mais preponderante no gabinete, avalizado por um apreço particular do presidente e, enquanto isso, o hoje todo-poderoso ministro de Economia, Luis Caputo, já caminha a pagar os custos políticos do ajuste. O ex-golden boy do JP Morgan já avisou a Milei que ficará poucos meses no cargo, por “questões familiares”.
Por Aram Aharonian | 29/1/2024 | Argentina
Aram Aharonian: Jornalista e comunicólogo uruguaio. Magíster em Integração. Criador e fundador de Telesur. Preside a Fundação para a Integração Latino-americana (FILA) e dirige o Centro Latino-americano de Análise Estratégica (CLAE)
Tradução > Joaquim Lisboa Neto
Fonte: https://estrategia.la/2024/01/27/argentina-cuando-el-pueblo-dice-no-crecen-los-complots-internos/
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Fontes: CLAE – Rebelión
Acesse original > https://rebelion.org/cuando-el-pueblo-dice-no-crecen-los-complots-internos/
(*) Por Joaquim Lisboa Neto, colunista do Jornal Brasil Popular, coordenador na Biblioteca Campesina, em Santa Maria da Vitória, Bahia; ativista político de esquerda, militante em prol da soberania nacional.