Acabou o comunismo, as finanças recuperaram o poder perdido nas duas grandes guerras da primeira metade do século XX, o mundo ficou mais rico, ainda que muito mais desigual, e a violência, ah! a violência, se multiplicou como nunca antes. E cai sobre todos, sem freios, sem pesos e contrapesos, como se fosse parte da nova ordem mundial.
A Síria, pobre de quem a habita, vai nos apresentar, fora das mídias, que apenas desinformam, o verdadeiro circo dos horrores (desculpem-me o lugar comum).
Deve haver algum motivo para além da ira dos deuses.
Crê-se que Hu Jin Tao, ao dar um novo caminho para a China, após as duas grandes tempestades, da Revolução Cultural e do capitalismo de Deng Xiao Ping, mostrou a direção: recuperar os ensinamentos de Confúcio (550 a.C.).
Hoje, com Xi Jin Ping, a República Popular da China (China), ainda que dirigida pelo Partido Comunista Chinês (PCCh), não mais se poderia classificar como marxista maoísta; talvez não gostem, mas são socialistas confucionistas, uma tradução do “socialismo com características chinesas”.
Comecemos, então, entendendo o confucionismo.
Certamente há grandes conhecedores do Mestre Kong (Kong Fu Zi), Confúcio. Satisfaço-me com as lições da filósofa e sinóloga francesa Anne Cheng que se refere a Confúcio como “aquele que apostou no homem”, ou seja, dispensou os deuses.
Escreve Cheng: “Confúcio, da mesma maneira que Buda, Sócrates,Cristo ou Marx, (faz acontecer) algo decisivo, produz-se um salto qualitativo, não apenas na história da cultura chinesa, mas também na reflexão do homem sobre o homem”. E explica, “por ter proposto pela primeira vez uma concepção ética do homem em sua integralidade e em sua universalidade” (A. Cheng, “História do Pensamento Chinês”, 1997).
Como isso se dá? Pois Confúcio nem é filósofo, nem fundador de religião, e seu pensamento parece antes um ensinamento de banalidades, de autoajuda, mas que moldou o homem chinês por mais de dois milênios.
Pesquisa Social Geral Chinesa (CGSS), de 2018, aponta que apenas um em cada 10 adultos chineses se identifica com alguma religião. Isto é, 90% dos chineses não crêem em divindades, mas em si próprios, daí a extraordinária precedência que ganha a instrução sobre qualquer outra atividade. E, ao se analisar os “Diálogos de Confúcio”, o primeiro capítulo trata “Do Estudo” (sem autor, “Diálogos de Confúcio”, tradução do chinês para o francês por Anne Cheng, e do francês para o português por Alcione Soares Ferreira, para Instituição Brasileira de Difusão Cultural S.A. IBRASA, SP, 1983).
Dada a importância da instrução para a vivência confuciana, é importante discorrer, ainda que sucintamente, sobre o significado e sua prática na China e no mundo neoliberal financeiro, como o do Brasil.
“Não é um prazer, uma vez que se aprendeu algo, colocá-lo em prática nas horas certas?”, questiona o Mestre no Livro I.1, de “Os Analectos”. Aprender e tornar a examinar frequentemente é o sentido da educação. Seu sentido é prático, como se encontra em “Os Analectos”: “Todos os dias, examino-me em três pontos: nos negócios, se terei feito o melhor que podia; nas relações com meus amigos, se fui sempre sincero; e se pratiquei as lições do Mestre” (Livro I.4).
Viver sem grandes desconfortos, ser diligente e prudente, e se preparar permanentemente, isto é, estar sempre motivado a instruir-se, é ser o verdadeiro homem. Veja a aposta no homem, como Cheng nomeia o pensamento de Confúcio, e constituiu, resumidamente, o Livro I.14.
Aprender e seguir os ritos constituem o objetivo do homem. E, se age assim, o que há de temer? A resposta esta no Livro XII.4 de “Os Analectos”: “Se, ao se examinar a si próprio, um homem não encontra qualquer razão para se repreender, que preocupações e medos pode ele ter?”.
E o homem que aprende, sabe distinguir os ritos de uma simples repetição, como também se encontra em “Os Analectos” Livro XIII.18:
“O governador de She disse a Confúcio: “em nossa aldeia há um homem que é chamado “Retidão”. Quando o pai dele roubou uma ovelha, ele o denunciou”. Confúcio respondeu: “Em nossa aldeia, aqueles que são corretos são muito diferentes. Os pais protegem os filhos, e os filhos protegem os pais. Retidão é algo encontrado nesse comportamento”.
É este o ensinamento do mundo submetido aos ditames do neoliberalismo financeiro? Do mundo unipolar que coloca a guerra como solução de conflitos e deixa o rastro de ódio que a força policial não contém nas cidades? E que faz das escolas um empreendimento qualquer, apenas outro modo de enriquecer e nada mais, qual futuro nos espera?
Apenas mais uma reflexão sobre a educação confuciana. O raciocínio chinês difere do nosso, do europeu, ocidental. Aprendemos de modo linear, com conhecimentos que se acumulam, mesmo que com suas contradições. Nosso pensamento, dialético ou linear, mais simplista, difere do chinês. Este é circular, em espiral. Ele vai se construindo em torno de um objetivo, como descrevendo ao redor dele círculos cada vez mais estreitos e profundos. Não é, no entanto, um pensamento indeciso ou impreciso, mas existe a vontade de aprofundar o sentido mais do que de esclarecer um conceito ou um objeto de pensamento.
Aprofundar significa descer cada vez mais fundo dentro de si, em sua existência, em suas experiências. A educação não se constitui de memorizações, mas de contínuo aprofundamento pela consulta à realidade, pela reflexão, pela meditação. Não se trata de buscar a gratificação do saber, mas de viver sempre melhor pelo conhecimento de si mesmo, dos homens e da natureza, isto significa em harmonia com o mundo.
BRASIL, UM PAÍS QUE NÃO QUER APRENDER
Por diversas vezes, em diversos ambientes, governos, agentes, o Brasil sempre demonstrou que a falta de memória, o desconhecimento do país, a ignorância é o projeto de poder das elites dominantes.
Houve, é bem verdade, brasileiros que se preocuparam com a instrução, com o conhecimento em nosso País. Mas nem foram muitos, nem encontraram, na quase totalidade das vezes, governantes quem levassem seus projetos para execução.
Sabendo incompleta esta curta enunciação, recordemo-la em nossa história. O Brasil começa em 29 de março de 1549, com a chegada de Tomé de Sousa à Bahia cercado de umas mil pessoas. Até então não havia nem arremedo de Estado. Apenas aqui e ali, amigos do rei se apossavam de terras que lhes foram dadas em caráter permanente: capitanias hereditárias. Os demais locais que couberam a Portugal pelo Tratado de Tordesilhas eram visitados por holandeses e franceses, principalmente, em busca de ouro e prata, como os espanhóis colhiam em suas terras a oeste da linha fixada no Tratado. Não os encontrando por aqui, levavam madeira, especialmente o pau-brasil.
É importante entender que um país exige um Estado, e este, um Governo, sem o que é “casa da mãe joana”, de quem dele se apossar.
Na concepção portuguesa, Estado se restringia à soberania, e deste modo o governo-geral do Brasil foi constituído do Governador-Geral, do capitão-mor (defesa externa), do ouvidor-mor (defesa interna), e do provedor-mor (finanças e impostos), a “fazenda”.
O que definimos como cidadania era inteiramente privado e monopólio da Igreja Católica, dos jesuítas que vieram com Tomé de Sousa e, logo após, em 1551, com o bispo dom Pero Fernandes Sardinha, célebre por ter sido devorado por índios caetés, no litoral do nordeste brasileiro, em 1556. Em 1553, Tomé de Sousa retornou a Portugal, sendo substituído por Duarte da Costa. Estava criado o Brasil.
Este formato de Estado, com as adaptações pelo crescimento demográfico e dos negócios, – em 1822, com a separação de Portugal, um órgão para as relações com os demais Estados – ficou intocável até novembro de 1930, quando Getúlio Vargas, empossado Presidente no dia 3, avança na construção da cidadania criando, no dia 14 de novembro, o Ministério da Educação e Saúde Pública, e, no dia 26 de novembro, o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio.
Vê o prezado leitor que a educação, a saúde e a proteção do trabalhador, elementos fundamentais para a cidadania, necessitaram 381 anos e oito meses para que o Estado entendesse como sua obrigação e um governo a colocasse na organização do Estado.
Não estranhe que o Brasil continue, menos de um século após a iniciativa de Vargas, um país analfabeto, inculto, que vê, por descaso dos governos, incendiar parte importante de sua história no Museu Nacional da Quinta da Boa Vista (Rio de Janeiro, 2018), e leiloar, no Estado mais rico do Brasil, São Paulo, por iniciativa de seu atual Governador, as escolas públicas, para as transformar em fontes de riqueza privada.
A cidadania sempre foi um ponto de atrito, dos golpes, de movimentos contra o desenvolvimento do Brasil. Basta ver que a libertação formal dos escravos demorou quase quatrocentos anos, e a efetiva independência jamais ocorreu.
No entanto, o mundo foi assolado por ideologia do individualismo e da ignorância no século XX: o neoliberalismo. Cozinhado com interpretações muito sectárias do liberalismo desde o século XVI (Hobbes, Descartes), passando por Adam Smith, Locke, Hume, Rousseau, mesmo com as críticas de Fourier, Proudhon, Engels, Papa Leão XIII, chega ao século XIX/XX com a “Escola Austríaca” (Carl Menger, von Mises, Hayek), para justificar a transformação do capitalismo industrial no poder entregue ao capitalismo financeiro.
E esta sopa envenenada teve o recurso das novas formas de comunicação. Sinteticamente, usando a terminologia do grande cientista brasileiro, Miguel Nicolelis (“O Verdadeiro Criador de Tudo”, Editora Planeta, SP, 2020), têm-se as informações shannoniana (Claude Shannon, 1916-2001) e gödeliana (Kurt Gödel, 1906-1978), e os recursos da cibernética e da informática, que possibilitam levar a desinformação, a ignorância ao sangue e à pele da quase totalidade dos australopitecos afarenses, versão 2000 d.C.
Se esta invasão ideológica corre o mundo, criando Biden, Trumps, Stamer, von der Leyen, Olaf Scholz, Javier Milei, Emmanuel Macron, Netanyahu, Zelensky, imagina a devastação que não faz no Brasil!
Se a construção da cidadania brasileira nasceu privada, chegou a vez da privatização da soberania.
A IGNORÂNCIA LEVA À MORTE
Dom João III teve o cuidado de manter sua parte das Américas, a que lhe coube do Tratado de Tordesilhas, organizando o Estado Colonial com as atividades próprias da soberania, estamos a um passo de a perder para os capitais financeiros internacionais.
Ao menos foi a seleção dos responsáveis pela Biblioteca do Exército para encerrar o ano de 2024 com duas obras bem significativas: “O Mercenário Moderno”, de Sean McFate, no que respeita a defesa externa (capitão-mor da costa), e “Além das Montanhas”, de David Kilcullen, quanto à defesa da lei e da ordem (ouvidor-mor).
“Cada vez mais, a política externa é realizada atualmente por meio de corporações. Superpotências tais como os EUA não podem entrar em guerra em lugares como o Iraque e o Afeganistão sem lançar mão de pessoal contratado, o que não acontecia há uma geração. Tarefas antes desempenhadas somente pelo pessoal da CIA ou pelos militares são rotineiramente contratadas a essas firmas listadas na Bolsa de Valores de Nova Iorque” (Sean McFate citado, tradução de Adeliz de Siqueira Ferreira para Biblioteca do Exército, RJ, 2024).
Para este octogenário nacionalista nada poderia atingir mais profundamente, levando-o quase às lágrimas: morreu minha Pátria, meu País, qual nacionalidade constará doravante no meu passaporte? DynCorpInternacionalista? se contratada a DynCorp. PA&Eista? se a Pacific Architects and Engineers. Ecowasista? da ECOWAS.
E, embora não seja um membro, como ficará a “família militar”, quem pagará seus proventos de reserva, suas pensões, os cuidados indispensáveis com a saúde?
Quem defenderá o Brasil quando vemos um mundo em conflito, como se estivesse se preparando para a III Grande Guerra?
É um verdadeiro pesadelo que o radicalismo privatista espalha pelo mundo em desenvolvimento. Mereceria uma Cúpula dos BRICS presidida por quem sabe o que é a guerra e não a deseje.
A outra publicação, “Além das Montanhas”, teve tradução de Rubens Santos Barino para Biblioteca do Exército (RJ, 2024), da qual é retirado:
“O desenvolvimento da minha área foi lento até que enorme migração de pessoas especialmente do Nordeste do Brasil, no final dos anos 70, chegou à Rocinha. Então, algumas construções foram realizadas. Os traficantes assumiram o poder nessa época e instituíram regras na favela. Visto que o governo e a polícia não costumavam vir aqui, os traficantes tomaram o controle dos bairros e estabeleceram: não roubar, estuprar ou matar dentro da favela. Os traficantes compravam corações e mentes ajudando alguns moradores mais pobres, fornecendo alimentos e necessidades. Muitos dos traficantes eram crias ou originários da favela. É uma dinâmica interessante e muito mais complexa do que posso explicar aqui. O tráfico tornou-se o poder paralelo e preencheu o papel do governo. Os traficantes construíram centros comunitários e pavimentaram ruelas. Depois de anos sendo negligenciado e rejeitado pelo governo, a quem você recorre? O tráfico ocupou essa função. Não diria que as pessoas eram felizes com isso, mas elas aceitavam. O que mais poderiam fazer? (2012)”.
A solução proposta é um “controle competitivo” que o Estado contratará para estabelecer a lei e a ordem.
Somem-se estas propostas e o que as se seguirá, se o Banco Central já se definiu como independente do interesse do Estado, da Nação Brasileira. Terra de Santa Cruz?
Ter-se-á o Estado como contratador de sua operação, dir-se-ia mais corretamente, o Governo transferido para empresas privadas, com ações em Bolsas de Valores. Sem Cidadania e sem Soberania, o País também estará nas Bolsas de Valores. É o reinado do capital financeiro, ou, para os teístas, é o Céu das Finanças apátridas.
Para que a política, que o Papa Francisco considera a mais nobremissão do homem? Haverá congresso ainda pior do que este. Pessoas tão incapacitadas que contratarão empresas com ações negociadas em Bolsas de Valores para elaborar projetos de lei e emendas para saquear o País.
O País, pelo qual se lutou, será personagem de ficção científica, algo como a vida dos australopitecos se espalhando pelo mundo.
(*) Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.
*As opiniões dos autores de artigos não refletem, necessariamente, o pensamento do Jornal Brasil Popular, sendo de total responsabilidade do próprio autor as informações, os juízos de valor e os conceitos descritos no texto.