Reflexões sobre a construção do Estado Nacional Brasileiro, destacando períodos-chave e a influência das Forças Armadas e da elite colonial
A Era Vargas, tendo início em novembro de 1930 e se prolongando até março de 1979, representou o único período de esforço governamental para formulação do Estado Nacional Brasileiro em nossa história. Não foi um esforço contínuo, consciente e homogêneo, mas a sucessão de governos que, uns mais outros menos, tiveram a Questão Nacional acima dos interesses políticos partidários e questiúnculas regionais e ideológicas.
Também não significa ignorar as diversas contribuições da intelectualidade brasileira, onde é mister destacar a do Patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) e seus Projetos para o Brasil.
Porém foi, principal e conscientemente, estruturado nos dois períodos de governo de Getúlio Dornelles Vargas (1930-1945 e 1951-1954) quando teve sua concepção de Estado Nacional, soberano e trabalhista, firmemente assentada e reconhecida por aliados e opositores.
Quem foram os aliados? A princípio membros das Forças Armadas, intelectuais e políticos nacionalistas, porém, principalmente, o povo brasileiro.
Quem foram os opositores? Os interesses estrangeiros que tinham no Brasil verdadeira mina de ouro para as despesas das suas elites e desenvolvimento alóctone, e os maus brasileiros, que se vendiam barato aos forasteiros, pela sua ignorância, preguiça e covardia, próprias da sociedade escravista, que se alongou da chegada lusitana até o raiar da República.
Sobre os colaboradores da institucionalização
Iniciemos pelas Forças Armadas, cuja presença em nossa história republicana foi marcante.
Um conjunto de fatores, principalmente do exterior, conduziram a Colônia Portuguesa à Independência, em 1822. Mas, apesar do empenho de talentos do porte de José Bonifácio, não havia sido constituída a elite nacionalista no Brasil que desse suporte ao necessário movimento independentista, aquele que não fosse apenas político, mas, também, econômico e social.
Eram vozes muitas vezes discordantes e contraditórias, focadas em questões locais, e, sobretudo, na conservação de uma estrutura de poder escravista e agrário-monocultora que não mais respondia aos imperativos das novas realidades mundiais, moldadas pelos poderes industriais e pelo progresso tecnológico.
Deve-se muito a D. João III que ao enviar Tomé de Sousa para administrar o Brasil lhe fez acompanhar de membros da recém-criada Companhia de Jesus (1534), os jesuítas, para todo processo de formação da nova elite ultramarina.
Os jesuítas constituíram-se como “soldados de Cristo”, nas palavras do fundador Inácio de Loyola, “perinde ac cadaver” (disciplinado como cadáver), para realizar o trabalho sem questioná-lo e nem para onde fosse enviado.
Deste modo não se formou no Brasil elite questionadora, reflexiva, mas docilmente submissa. E, se assim era a elite, imagine a multidão de escravos, deslocados de seus ambientes nativos! Ainda hoje, sofremos muito desse mal.
Antecipando reflexões desta série, é uma das razões da sistemática sonegação que sofre o processo educacional no Brasil, malgrado a existência de talentos como Anísio Teixeira, Paulo Freire, Darcy Ribeiro e dos muitos profundos conhecedores da pedagogia que tivemos.
As Forças Armadas passaram da defesa do Colonizador para do Colonizado sem que lhes fosse fornecida qualquer formação diferenciada, sem qualquer critério reflexivo, sem mesmo sentir a mudança de comando. Até por ser o mesmo sistema, o monárquico, e o novo governante um filho do antigo.
Realmente é quase milagroso que as Forças Armadas se envolvessem em combate pelo Brasil tendo somente 40 anos da Independência. Mas foi a Marinha, que mais atuara na manutenção da territorialidade da colônia brasileira, que se destacou na Guerra contra o Paraguai.
A fragilidade da Força Terrestre foi compensada pelos títulos concedidos aos seus generais pelo Imperador. E, tão logo surge a República, pelo treinamento de seus oficiais nos mais destacados exércitos no exterior.
Porém onde ficava a identidade nacional brasileira? Nos “jovens turcos” instruídos no exército de Bismarck? Nos adestramentos em instalações estadunidenses, que tinham e impunham sua ideologia da “Doutrina Monroe” (1823) e do “Destino Manifesto” (1845)?
O que realmente ocorreu foi um esforço próprio, a formação quase pessoal de militares como Marechal Floriano Peixoto, dos tenentes nos anos 1920, que governaram o Brasil como generais de 1967 a 1979, e outras verdadeiras exceções como os heróis da Força Expedicionária Brasileira (FEB), que simbolizamos no brigadeiro Nero Moura.
Os primeiros passos
Das 11 Conferências pronunciadas, em 1920, pelo Capitão Genserico de Vasconcelos, em escolas militares, que constituíram dois volumes da História Militar do Brasil, editada pela Bedeschi (RJ, 1921), destacamos a primeira que trata da “Influência do Fator Militar na Organização da Nacionalidade”. Recordando que esta década viu surgir os movimentos que conduziram à Revolução de 1930.
Logo no início, Capitão Vasconcelos afasta a causalidade do descobrimento do Brasil. Foi, conforme expõe, obra pensada, descrita por Duarte Pacheco em 1498. Também a célebre carta de Pero Vaz de Caminha nada refere à contrariedade dos ventos ou qualquer motivo que afastasse da rota traçada. E, escreve o Capitão, que na carta do rei de Portugal ao rei de Castela é reafirmada a intencionalidade da missão de Cabral.
Porém a expedição de Américo Vespúcio (1501) desfez a expectativa de terra pequena e rica para exploração. Ao contrário, era um continente imenso porém, do Cabo de São Roque (Rio Grande do Norte) ao Uruguai, onde não havia qualquer vestígio de ouro, de prata, nem das especiarias orientais cobiçadas, e o povo que habitava era primitivo, inculto, incapaz de realizar o que fosse do interesse da Metrópole.
Assim nossa Terra ficou esquecida. Foram piratas, de diferentes nacionalidades, que obrigaram D. João III, sucessor de D. Manoel, a relançar os olhos para o Brasil.
Na análise de Vasconcelos, o mundo de então só conhecia o direito da força. D. João tentou a ocupação dividindo 15 lotes de terra para fidalgos, em um modelo que, se externamente se assemelha ao feudalismo, significava uma aliança, bastante moderna para a época, entre a Coroa e uma aristocracia aburguesada, ou seja, uma relação típica do capitalismo mercantil, do qual Portugal foi um dos expoentes.
Porém, os fidalgos não estavam dispostos a arriscar seus já parcos recursos. E, independentes, as capitanias não tinham como ajudarem-se umas as outras. Ao contrário, poderiam comprometer a unidade da terra descoberta.
A compreensão da descoberta e o interesse na ocupação do Brasil surge quase meio século depois da descoberta.
Podemos entender que Portugal já havia contornado e conquistado a África, ali implantando colônias que lhe proviam de bens e recursos. Chegara à Índia e criara em Sagres a escola de tecnologia náutica. O Brasil parecia mais um problema do que uma perspectiva de expansão, de desenvolvimento da Casa de Avis. Ou, então, alguma reserva para o futuro incerto.
Condições diferentes da portuguesa encontraram dois outros impérios coloniais europeus: Espanha e Inglaterra. Espanha e Portugal chegaram às Américas no século 16; a Inglaterra no século 17, com a colônia em Virgínia (1607).
Voltemos à compreensão das Forças Armadas na construção institucional do Brasil.
Nelson Werneck Sodré, em sua A História Militar do Brasil (1965), foca na transformação cultural europeia, da fragmentação feudal para a unidade mercantil, acompanhada da construção idiomática, tudo exigindo novas tecnologias. Deste modo, o atraso português da Inquisição reproduzia-se no modelo das capitanias hereditárias, que, malgrado a existência do Governador-Geral, ainda permaneceu até as vésperas da Independência (1821).
A descoberta do Brasil colocava um problema: a população local só produzia para suas necessidades imediatas, não fornecia produtos para troca, inexistiam recursos naturais valiosos, portanto para ter o que comercializar era necessário produzir, para o que a expansão portuguesa não se preparara.
Apenas o açúcar, já produzido nas ilhas oceânicas das costas da África – Açores, Cabo Verde, Ilhas da Madeira e São Tomé e Príncipe –, poderia ser transplantado para produção e comercialização pelo Brasil. O que exigiria o processo de colonização, impossível com os habitantes locais da colônia, e de emigrantes, que o pouco habitado Portugal teria dificuldade. A escravidão de africanos, para trabalhar no Brasil, foi a saída e com ela veio a deformação civilizatória que se introduziu, legalmente, em nosso País e perdurou por 300 anos.
O senhor da terra era também investido da autoridade militar terrestre e os habitantes a reconhecê-lo como comandante. Assim surge a Carta de Doação de 10 de março de 1534, ampliado pelo Foral de 4 de setembro do mesmo ano e pelo Regimento de 17 de dezembro de 1548.
O Brasil inicia escravista e com o recrutamento militar obrigatório para poder produzir açúcar e participar da modernidade econômica lusitana.
Porém, pela sucessão dinástica, em 1581, o Brasil deixa de ser português para ser espanhol. E assim permaneceu por quase seis décadas, até 1640. O Tratado de Tordesilhas na prática se apaga, e as bandeiras saem de São Paulo para tomar de assalto o continente. A territorialidade brasileira se construía então.
Devemos ao naturalista alemão Karl Philip von Martius das primeiras reflexões sobre nossa História, redigidas em 1843: “Sei muito bem que Brancos haverá, que a uma tal ou qual concorrência dessas raças inferiores taxem de menoscabo à sua prosápia; mas também estou certo que eles não serão encontrados onde se elevam vozes para uma historiografia filosófica do Brasil. Os espíritos mais esclarecidos e mais profundos, pelo contrário, acharão na investigação da parte que tiveram, e ainda as raças da Índia Etiópica no desenvolvimento histórico do Povo Brasileiro, um novo estímulo para o historiador humano e profundo” (Revista Trimestral de História e Geografia do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, nº 24, janeiro de 1845).
Capitão Genserico de Vasconcelos (obra já citada) ressalta em von Martius a importância dada a este compulsório alistamento, pois criará a força que “vai no correr de nossa história defender o Brasil litorâneo contra as invasões francesas, inglesas e holandesas; que serve para a luta ininterrupta contra o indígena, protegendo a sociedade nascente e a marcha do povoamento branco e da civilização europeia no interior”.
E acrescenta o Capitão Vasconcelos:
(*) Por Felipe Maruf Quintas, cientista político, e Pedro Augusto Pinho