A sinergia de epidemias resultante da inviabilidade do modelo econômico, social, ambiental e político exige uma resposta sistêmica
A sindemia de covid-19 trouxe uma realidade que poderia ser descrita como uma distopia fictícia há alguns meses. O termo sindemia foi cunhado pelo antropólogo Merril Singer para se referir a uma sinergia de epidemias, em que aspectos socioeconômicos e ambientais estão interrelacionados a doenças transmissíveis e não-transmissíveis, complexificando as respostas para a saída de crises. Richard Horton, editor-chefe do periódico científico The Lancet, publicou, em setembro de 2020, um editorial no qual caracteriza a crise do coronavírus como uma sindemia.
A crise sanitária atual escancarou a inviabilidade do modelo econômico, social, ambiental e político que lhe serviu de terreno fértil, de modo que questões globais e interrelacionadas devem ser reconhecidas e abordadas para superar a dimensão sistêmica da crise. As desigualdades raciais, de classe e de gênero conformam questões centrais a serem enfrentadas neste contexto, pois, se já eram preexistentes à crise, foram agravadas com ela.
As mulheres – em especial as mulheres negras – são as mais afetadas pela crise do novo coronavírus por estarem sobrecarregadas com o trabalho reprodutivo e de cuidado, que lhes é imputado de forma naturalizada, e por serem maioria entre profissionais à frente do enfrentamento à sindemia, seja na atenção à saúde, no setor de distribuição ou no de serviços.
É fundamental considerar as interseccionalidades de gênero, raça, classe, entre outros aspectos, no ciclo de formulação, implementação e avaliação de políticas públicas
O aumento da violência doméstica com o isolamento social é outra dimensão que afeta diretamente as vidas das mulheres. O Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que as chamadas de emergência à Polícia Militar, em razão de violência doméstica, aumentaram cerca de 4% no primeiro trimestre de 2020, em comparação ao mesmo período do ano anterior. Da mesma forma, os feminicídios aumentaram 1,5% e os homicídios dolosos, cujas vítimas foram mulheres, aumentaram cerca de 2%.
O cenário econômico tampouco lhes é favorável diante da aceleração do desemprego feminino. A taxa de desocupação é de 17,9% entre as mulheres no primeiro trimestre de 2021, ao passo que a dos homens é de 12,2%, de acordo com a Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) –, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). O contexto extremamente difícil, sem sinais claros de uma saída da crise, causa ademais um sério impacto nas condições de saúde mental das mulheres.
As mulheres têm, então, um papel central em qualquer política pública que busque uma retomada em prol da justiça social, baseada no enfrentamento efetivo à sindemia e, portanto, às desigualdades que a alimentam – qualquer resposta a esta crise sistêmica deve, portanto, centrar sua atenção nas mulheres. A implementação da transversalidade de gênero é, assim, um ponto de partida obrigatório, como ressaltado por organizações como Banco Mundial e OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
Por outro lado, os ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) são um exemplo de resposta holística que, embora tenha sido elaborada bem antes da crise atual, pode guiar a resposta à sindemia. Cinco anos após a aprovação da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, assistimos a atual sindemia expor sem pudor o tamanho da fratura social de muitos países, desenvolvidos e em desenvolvimento. Os governos estão lutando para oferecer respostas, enquanto os investimentos públicos encolhem. Embora o relatório “World Economic Outlook” elaborado pelo do Fundo Monetário Internacional, publicado em abril de 2021, tenha previsto o crescimento da economia global em 6% no ano (3,7% para o Brasil), a recuperação da crise e das altas taxas de desemprego complexificam a capacidade pública de resposta à crise, na maioria dos países, em especial no Brasil. Além disso, observamos uma recuperação em K, onde os ricos ficam mais ricos e os pobres ficam mais pobres. Os ODS são, assim, um modelo de integração de políticas públicas em uma perspectiva holística, que pode inspirar formuladores de políticas e tomadores de decisão em suas respostas locais às complexidades da crise atual.
O Banco Mundial, por sua vez, no relatório “Nowcast of the Global Poverty Rate at the $1.90 Line, 2015–21”, indica o pior revés em 25 anos nos esforços para acabar com a pobreza extrema, devido à crise da covid-19, à mudança climática e a conflitos armados. O aumento da pobreza global onera principalmente a vida das mulheres e desafia os governos a agirem com urgência.
Outras características também podem se sobrepor ao gênero como objeto de opressão e discriminação, como raça, sexualidade, identidade de gênero, religião, idade, deficiência, origem e migração, o que geralmente agrava sua exclusão. Além disso, as mulheres são responsáveis (e frequentemente sobrecarregadas, em razão disso) pela política e pela economia dos cuidados, administrando a sobrevivência cotidiana de suas famílias, filhos, idosos e parentes doentes. É fundamental, portanto, considerar as interseccionalidades de gênero, raça, classe, entre outros aspectos, no ciclo de formulação, implementação e avaliação de políticas públicas.
Vale dizer, que as melhorias nas condições de vida das mulheres impactam suas comunidades, pois tendem a alavancar as condições de familiares e de suas comunidades. Com isso, uma resposta pública sólida a esta crise deve abordá-la com foco nas mulheres, em especial nas mulheres negras, como uma chave para uma recuperação efetiva, fortalecendo as igualdades racial e de gênero, e a justiça social. A transversalidade de gênero – uma metodologia que coloca as mulheres, com suas interseccionalidades e pluralidades, no centro das políticas públicas -, combinada ao ciclo das políticas públicas , permite orientar o investimento público para que tenha maior eficácia, além de priorizar o segmento demográfico (ou seja, mais da metade da população) que foi invisibilizado e excluído em um mundo projetado para e por homens, como demonstrou Criado Perez em seu premiado livro Invisible Women.
Uma recuperação baseada nas igualdades racial e de gênero, e na justiça social depende de investimentos sérios dos governos em políticas e serviços públicos e da adoção de uma perspectiva holística e integrada ao abordar diferentes questões interrelacionadas, como proposto nos ODS. Soluções pontuais em políticas setoriais podem trazer resultados circunscritos, mas somente uma resposta integrada e abrangente será capaz de responder à complexidade exigida neste momento – o diagnóstico local baseado em evidências e a transversalidade de gênero podem embasar planos de recuperação sólidos. A fratura social que a sindemia do coronavírus expôs em todo o mundo exige uma resposta urgente e é uma ocasião para refundar nossas sociedades com base na solidariedade, na justiça social e nas igualdades racial e de gênero. Os gestores públicos têm uma oportunidade única de serem ousados e inovadores o suficiente para propor uma resposta sistêmica a uma crise sistêmica.
(*) Por Ana Julieta Teodoro Cleaver é mestre em antropologia e doutoranda em ciência política. Ingressou na carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental em 2001.
Texto publicado, originalmente, no site Nexo Políticas Públicas