O Rio Grande do Sul está mergulhado no caos e as forças produtivas que ergueram o grande estado ao longo da história estão prostradas, depois da catástrofe climática.
Certamente, quando as águas baixarem totalmente, restarão mofos das destruições das habitações, das fábricas, das ruas, dos bairros, dos equipamentos urbanos, enfim, uma economia e uma cultura debaixo d’água, apodrecida.
Restará o elemento humano, a fibra, a determinação, o sonho, a poesia, a admiração de uma energia que se fez histórica, lamentavelmente, levada pelas águas torrenciais do Guaíba e as suas infraestruturas mal cuidadas por gestores públicos incompetentes etc, mais preocupados com o retorno financeiro e lucrativo de obras do que da efetividade de um edifício duradouro para a sobrevivência segura da comunidade humana solidária.
Os seres humanos imersos na tragédia estão sem a riqueza que criaram ao longo dos anos e séculos.
Será preciso refazer tudo, pois, na prática, ocorreu uma guerra de extermínio, uma bomba atômica caiu na Hiroshima gaúcha e tudo foi por água abaixo.
Muitos bilhões de dólares, reais e outros mais fatores monetários serão necessários, mas esses recursos não existem.
Porto Alegre e seus habitantes encharcados de desgraça estão com seus patrimônios desvalorizados, talvez, além de 50% do seu valor real.
Restabelecer o que se perdeu, realizando consertos no que está em debacle, valerá a pena, se ficar além das posses dos proprietários, já descapitalizados pela desgraça?
Alguém que ficou sem casa, sem terras, sem animais, sem infraestrutura, sem fábrica, sem emprego, sem renda, carente de tudo e do consumo necessário à reprodução da vida, disporá do capital para refazer o que se perdeu?
Ou entregará por uns tostões àqueles que dispõem desse capital para aproveitar a desgraça alheia e amealhar-se lucrando com a desgraça de graça?
Que investidor se habilitará a comprar casas ou edificações destruídas para reconstruí-las e fazer algum dinheiro no cenário de escassez geral da poupança comunitária que emerge do caos?
MISÉRIA CHEGOU FORTE
Está se vendo, claramente, que a miséria chegou instantânea com a destruição das chuvas e o estado gaúcho outrora rico está em situação de um Nordeste piorado em seus piores anos de seca e desgraça.
O patrimônio coletivo está afetado e destruído e não há força do capital privado capaz de ir à recuperação das perdas por simples vontade de fazer o bem comunitário.
A propriedade privada perde todo seu valor diante da tragédia que abala ou destrói a propriedade coletiva.
Se o coletivo se esvai, por que cuidar do individual agônico, sem sustentabilidade?
A burguesia gaúcha, cheia de si, vaidosa, tentada, historicamente, até ao separatismo, por se sentir mais culturalmente confortável ao convívio com Argentina e Uruguai, extensões de suas terras, está completamente falida, sem capital para realizar os novos investimentos capazes de gerar os lucros esperados pelas inversões capitalistas.
Restam a esses homens, orgulhosos da propriedade privada, da qual são constituídos, material e espiritualmente, rodar o chapéu nos ministérios da Capital da República em busca de esmolas salvadoras.
AJUSTE FISCAL NEOLIBERAL INIMIGO DA RECONSTRUÇÃO
O problema é que a Capital do país está mergulhada no neoliberalismo que exige dela cortes de gastos nos custos sociais, inviabilizando realizações concretas para o desenvolvimento sustentável, de modo que seja atendido o essencial: a poupança financeira a ser destinada ao pagamento de juros e amortizações da dívida, embalada no rentismo especulativo bancado pelo Banco Central Independente por meio da Selic extorsiva.
Esta é a prioridade, não salvar vidas humanas destruídas pela catástrofe climática.
Portanto, resta à sociedade gaúcha, mergulhada na miséria emergente, apenas duas alternativas, para vencer o neoliberalismo rentista que a acossa: a economia solidária ou a ganância.
Ou se busca todos os habitantes a salvação coletiva por meio de uma economia erguida no esforço voluntário e solidário, ancorado no Estado, ou se desfaz sob o impacto do individualismo da propriedade privada que recorre aos cofres públicos quando não tem saída.
Restaria, então, como acontece nas recuperações dos desastres: o grande capital aproveita para tomar conta de tudo.
Será a sina disponível do poderoso capital financeiro especulativo a cair matando sobre o cenário, comprando tudo na bacia das almas, para recuperar algo que ainda pode ser recuperado, de modo a erguer de novo as cidades e a moral do povo que está embaixo das águas, sem oxigênio para garantir sua sobrevivência?
Porto Alegre está na situação da capital de Portugal, Lisboa, em 1º de novembro de 1755, quando foi destruída por um terremoto, descrito por Voltaire.
Trata-se de obra de reconstrução para anos e anos que pode reproduzir progresso espetacular ou um simples rosário de tristeza, se predominar a ganância nessa tarefa hercúlea.
SOLIDARIEDADE, EXPERIÊNCIA COMUNITÁRIA
Os gaúchos desenvolveram a economia solidária durante governos do PT, os quais escalaram a prática do orçamento participativo por meio do qual a comunidade se empenha coletivamente para a reconstrução do que se perdeu.
Não seria a hora de aprofundar a experiência coletiva como centro do fogo comunitário em união com o Estado nacional?
Mas, o que se vê, pelo menos nesse instante dramático, não é o espírito solidário, mas a divisão política no Estado que, opositor ao governo federal, aprofunda discórdias e desentendimentos já numa luta política com vistas à eleição municipal desde ano.
A concórdia social sucumbiu junto às águas.
Se não será possível, como se vê, a reconstrução pela economia solidária, teorizada pelo grande economista petista, Paul Singer, de modo a envolver a sociedade numa tarefa única, cercada de solidariedade, restará o sucateamento urbano.
O capitalismo de desastre vai dar o preço adequado aos seus interesses, de modo a lucrar o máximo possível, enquanto os trabalhadores, sem o estímulo necessário à reconstrução solidária, afundam na miséria e na revolta.
Pode pintar até revolução nesse contexto dramático e aparentemente sem saída, no cenário do ajuste fiscal neoliberal tupiniquim no qual somente ganha a bancocracia rentista, enquanto a sociedade empobrece aceleradamente.
Foto Agência Brasil
(*) Por César Fonseca, jornalista, atua no programa Tecendo o Amanhã, da TV Comunitária do Rio, é conselheiro da TVCOMDF e edita o site Independência Sul Americana.