O professor de direito da Universidade Federal do Pará Girolamo Domenico Treccani diz que o Projeto de Lei 4357/23, que tramita em regime de urgência na Câmara Federal para mudanças na Lei 8.629/93, que regulamenta dispositivos constitucionais da reforma agrária, “favorece a concentração de terras, a grilagem, a exclusão social e os conflitos fundiários”. Ele ressalta que a proposta pretende evitar desapropriações de terras bastando que sejam produtivas, desconsiderando o atendimento aos critérios legais da função social da propriedade. A justificativa do autor do PL, deputado Rodolfo Nogueira (PL/MS), é que a desapropriação de terras produtivas pode provocar instabilidade social e redução da produção agrícola, com impactos negativos na economia e na segurança alimentar da população. “Evidentemente o agronegócio vai negar as consequências, mas são consequências lógicas”, afirma o advogado e professor universitário que há mais de 40 anos participa dos principais debates nacionais sobre questões territoriais. Em sua opinião, o governo federal deveria cumprir com a determinação de distribuição de terras, transformando a reforma agrária em política de combate à exclusão social.
JBP – Como o sr. considera a intenção dos deputados na Câmara Federal em retirar a função social da terra, com o Projeto Lei 4357/2023?
Girolamo Treccani – No dia 26 de novembro, com o voto de 290 deputados foi aprovado o regime de urgência para o PL4357/2023. Primeira consideração, para mim fundamental: Requerer o regime de urgência significa de uma maneira proposital excluir o debate público, como se o debate sobre a função social fosse algo que diz respeito somente ao Congresso Nacional e não ao povo brasileiro. Outra questão é que a exigência do cumprimento da função social está prevista na Lei 8.629 de 1993, que regulamenta uma obrigação constitucional. Se a bancada ruralista quiser alterar a função social da propriedade terá que alterar a Constituição. Uma outra questão: É importante observar que este projeto de lei foi apresentado no ano passado, logo depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou a ação direta de inconstitucionalidade, a Adin 3865.
JBP – Qual foi o recado do Supremo?
Girolamo Treccani – A função social da propriedade é cumprida quando ao mesmo tempo se cumprem os quatro requisitos fundamentais que estão nos incisos de 1 a 4 do artigo 186 da Constituição Federal. Esses artigos são quase uma cópia daquilo que já estava no Estatuto da Terra, que coincidentemente completou 60 anos em novembro, no mesmo mês em que foi aprovado o regime de urgência deste PL. Todas essas informações vêm desde 1934, 1946, passou pela Constituição também de 1967. Está na atual Constituição (1988) para mostrar como esta questão é o eixo fundante de todo e qualquer debate sobre a questão agrária, fundiária, agrícola e diria ambiental e social. Por que? Vamos muito rapidamente analisar esses quatro incisos.
JBP – Ou seja, são décadas de consenso.
Girolamo Treccani – Exatamente. E é muito estranho que depois da derrota da Confederação Nacional da Agricultura nesta ação direta de inconstitucionalidade, a bancada do agronegócio proponha algo que o Supremo já rejeitou. É uma afronta direta de uma determinação do STF. Mas o que me preocupa mais é … vamos olhar muito rapidamente esses quatro incisos: o primeiro se refere ao cumprimento da função produtiva, que de maneira especial está sendo alvo da bancada ruralista.
JBP – Como?
Girolamo Treccani – *Nós sabemos que o aumento da produção de bens primários na agricultura não vem exclusivamente pelo avanço da fronteira agrícola. Mas também vem pelo avanço da produtividade (conquistada por avanços tecnológicos de produção). Portanto, um Congresso Nacional que determina que se exclua a análise dos índices de produtividade está dizendo para a agricultura brasileira que toda a ciência é inútil.
JBP – O que o sr. quer dizer?
Girolamo Treccani – É como se nenhum avanço tivesse sido feito nesses últimos 50 anos. Segundo: em que pese o PL focar exclusivamente sobre a produtividade, é significativo que nesta ação direta de inconstitucionalidade, a Adin 3865, aprovada no ano passado, o Supremo destacou que este aspecto do inciso 1º tem que ser visto e analisado em conjunto com os outros três. O segundo são as normas ambientais.
JBP – Por quem essa Adin foi provocada?
Girolamo Treccani – Foi provocada pela Confederação Nacional da Agricultura.
JBP – Com esse mesmo propósito?
Girolamo Treccani – Exatamente. No fundo a ideia é a mesma. Perderam no Supremo e não sei se foi revanche, mas assim que perderam entraram com esse projeto de lei. Os argumentos são os mesmos.
JBP – É uma nova tentativa? Só que o Supremo destaca esse aspecto e relaciona com os outros incisos? É isso?
Girolamo Treccani – Exatamente. Descolar o debate de produtividade dos outros incisos do artigo 186 é algo que tem que ser absolutamente rejeitado. Porque o segundo inciso – é fundamental lembrar que diz respeito ao cumprimento da função ambiental. Portanto todas essas normas, como Código Florestal, código de água, de caça e outros… todos os direitos amparados ao cumprimento da função ambiental estão previstos lá. Direitos e obrigações. Portanto, dizer que cumprir apenas a função social produtiva é suficiente para evitar uma desapropriação, significa não reconhecer que a função social é algo muito mais amplo do que isso. Eu reitero: isso estava no Estatuto da Terra de 1964.
JBP – Então quando se fala na desapropriação de um imóvel não é apenas em função da produção?
Girolamo Treccani – Na realidade o que eles querem é que uma propriedade produtiva não seja desapropriada. Só que a função social é exercida ao mesmo tempo em várias dimensões. Vamos supor que determinado proprietário alcance índice de produtividade conforme a norma, que é uma norma de 50 anos atrás, que consiga alcançar aquele índice, mas alcança violando o artigo segundo. Isto é, utilizando agrotóxico, por exemplo. Ele estaria cumprindo o inciso primeiro, que se refere à produtividade, através de um meio que é inconstitucional exatamente porque é proibido utilizar agrotóxicos não licenciados, acima de determinado limite… como infelizmente está acontecendo… não posso jogar agrotóxico de avião ou drone na Amazônia onde tem mais água do que terra. Eu estaria envenenando o meio ambiente de uma maneira muito mais grave. Significa que não posso alcançar o índice de produtividade esquecendo ou violando as normas ambientais. O terceiro inciso diz respeito ao cumprimento da função social na sua dimensão social, isto é, poderia se ter uma fazenda que alcança índice de produtividade, mas utiliza-se de mão de obra na condição análoga a de escravizados. O artigo 243 da Constituição nem determina a desapropriação, determina o confisco. Isto é, a ruptura institucional onde a União se declara proprietária daquele imóvel sem pagar qualquer tipo de indenização.
JBP – Todos os instrumentos legais já estão prontos.
Girolamo Treccani – O último inciso do 186 é sobre promoção do bem-estar. Evidente que só se promove o bem-estar se todas as outras condicionais sobre as quais acabamos de falar estiverem cumpridas – e reitero, está lá no caput do 186 – simultaneamente. Eu percebo que o Projeto de Lei 4357/23 primeiro é inconstitucional porque não se altera a Constituição através de projeto de lei. E não venha me dizer que o esforço deles é só alterar a lei agrária nacional que é a Lei 8.629/93. Não adianta alterar a lei se não altera a Constituição. Essa norma expressamente regulamenta o capitulo relativo à reforma agrária, da Constituição Federal.
JBP – Deixa-me voltar a algo que tenho dúvida. Sempre que se fala em desapropriação, se fala na relação da terra com a produção.
Girolamo Treccani – Não. Nós já tivemos na nossa história nas últimas décadas desapropriações por desrespeito à norma ambiental e já tivemos desapropriação por desrespeito à norma social. Inclusive aqui no Pará, a Fazenda Flor da Mata foi constatada que havia trabalho escravo, e foi desapropriada. Naquele momento histórico, há 15 ou 20 anos, ainda não estava em vigor o artigo 243 que determina o confisco (julgado como repercussão geral pelo STF) portanto foi pago em dinheiro, desapropriada. Mas a possibilidade de desapropriar, pelos outros incisos do artigo 186 e não apenas o primeiro, já tem um caminho percorrido há bastante tempo. Lógico que 99% dos decretos de desapropriação por interesse da União para fins de reforma agrária quase que são da dimensão produtiva. Mas está integrada dentro de todo o arcabouço institucional.
JBP – Quais as consequências do PL?
Girolamo Treccani – Esse projeto de lei evidentemente é para favorecer a concentração de terras, a grilagem, exclusão social e conflitos fundiários. São consequências que evidentemente o agronegócio vai negar, mas são consequências lógicas. O maior prejudicado caso esse tipo de projeto de lei seja aprovado é o povo brasileiro. Porque vai inviabilizar a reforma agrária, inviabilizar qualquer tentativa de alterar a estrutura de concentração da propriedade. E aqui eu acho que o agronegócio está atentando contra a agricultura brasileira. Porque afirmo isso? Porque apesar de eles dizerem que são legítimos representantes da agricultura, qual o representante que vai dizer ‘eu não quero produzir’? Vão dizer que é para proteger a produção. Se eu não respeito os índices de produtividade e não faço com que gerem uma punição, eu estou favorecendo o agrobandido.
JBP – Eu poderia concluir que o agronegócio está mais interessado na especulação da terra do que na produção?
Girolamo Treccani – Provavelmente sim. Mas eles dizem que é pra proteger quem produz. Mas essa proteção é absolutamente equivocada à luz da Constituição, como já conversamos.
JBP – Mas no final o que querem? Não é ampliar a fronteira para produzir?
Girolamo Treccani – Eles dizem que sim, mas quando analisamos as consequências desta não punição de quem não produz ou de quem produz pouco, de quem produz mal ou à revelia das normas ambientais ou sociais, eles protegem aqueles que não têm nenhum interesse que a agricultura seja algo que seja bom pra todo o povo brasileiro. Só mais uma coisa que acho fundamental: Com esta ação sobre índice de produtividade, se esquece a questão fundamental da agricultura que é produzir alimentos. Isto é, a segurança alimentar que é garantida hoje pela agricultura familiar, que é diversificada, usa menos veneno, faz efetivamente inclusão social, tudo isso não está na preocupação de quem produziu este projeto de lei. No fundo, aquilo que se atenta é também contra a segurança alimentar, quando a preocupação deles é escolher somente aqueles produtos que são rentáveis e que possam ser escoados para fora do Brasil, para favorecer a balança comercial.
JBP – Voltando ao Estatuto da Terra, qual foi a intenção dos militares?
Girolamo Treccani – Seria muito importante lembrar que neste final de novembro festejamos 60 anos do Estatuto da Terra. E a filosofia fundamental pelo menos no que está escrito – não funcionou na prática; os militares fizeram o Estatuto da Terra e não cumpriram nada. O artigo primeiro, parágrafo primeiro é priorizar a reforma agrária como alteração da estrutura fundiária. Falaram bem da reforma agrária, mas nunca fizeram.
JBP – Mas eles poderiam não escrever o Estatuto. Porque fizeram?
Girolamo Treccani – Acho que o papel fundamental foi de José Gomes da Silva, o ideólogo que produziu o Estatuto da Terra. Ele era militar, mas tinha uma consciência muito elevada no que diz respeito à agricultura e à necessidade de mudar a a estrutura fundiária. Se olhar a Mensagem 33, que foi o documento que o general Castelo Branco depois do golpe remeteu para o Congresso Nacional encaminhando a minuta do Estatuto da Terra, nesta mensagem ele diz que é estratégico para o Brasil fazer a reforma agrária.
JBP – Por que era estratégico?
Girolamo Treccani – Primeiro porque aumentaria a produção, segundo seria um meio para estancar o êxodo rural, terceiro iria ajudar na implementação das exportações, portanto o balanço de pagamento, e quarto, iria modernizar o campo. Analiso a política dos governos militares-civis de 64 até 1985…
JBP – Governos militares e civis?
Girolamo Treccani – Na verdade a ditadura não foi apenas militar, mas tinha muito civil lá dentro. Os vários ideólogos não eram militares. Mas quando vamos olhar a política implementada por esse regime, foi a expansão da fronteira. Não foi reforma agrária. No lugar de alterar a estrutura fundiária no Sul, Sudeste ou Nordeste, foi a famosa marcha pro Centro-Oeste no período Vargas (Getúlio) e mais recentemente na década de 60, 70 e 80 para a Amazônia. Não resolveram os problemas fundiários do Sul, Sudeste e Nordeste, e empurraram a população para a Amazônia, expandindo a fronteira agrícola, o que já havia acontecido no Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, décadas antes. Por isso acho importante fazer a relação dos 60 anos do Estatuto da Terra e a sua proposta, comparando com esse projeto de lei que no meu entender é absolutamente fora de qualquer possibilidade de ser aceito pela população brasileira.
JBP – Qual a sua perspectiva?
Girolamo Treccani – Precisamos recuperar o valor da reforma agrária como estratégia de política pública. E esse projeto de lei vai na contramão da história. Hoje, no meu entender o Congresso Nacional discute a flexibilização das normas agrárias e o objetivo é titular todo mundo, como se a pura e simples titulação resolvesse os problemas inclusive daquele que grilou terra. Tem um artigo no caderno da CPT (Comissão Pastoral da Terra) de três anos atrás com a frase: ‘transformar o agrobandido em homem de bem’. Sempre fui a favor de regularizar a terra. Só que acho que precisamos de um discurso mais amplo, precisamos do ordenamento territorial – o que significa conhecer a realidade, portanto saber quanta terra pública existe no Brasil a fora, seja federal ou estadual. Nós precisamos debater e aqui foi fundamental no ano passado a retomada da Câmara Técnica de Destinação de Terras Públicas por parte do Governo Lula. Só que depois de saber o que é nosso, o patrimônio do povo, temos que abrir a Câmara para a efetiva participação popular. Eu fecharia com a proposta do governo atual de ordenamento territorial como política de inclusão social.
Foto da capa: Deputados tentam derrubar fundamento da Constituição Federal, defendido até pelos militares do golpe de 1964, com uma lei