O começo da notícia era impessoal: o governo Bolsonaro – dizia – decidiu transformar o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Rio, em “Palácio do Império”, uma organização de finalidade turística voltada para exaltar a história do Brasil monárquico e imperial. O acervo museológico da Quinta seria removido para outro lugar, inclusive as famosas e milenares múmias egípcias que atraem a curiosidade de tantas crianças e adultos.
Só esse começo da notícia suscitava perguntas incômodas: mas se já existe o Museu Imperial de Petrópolis, encarregado do acervo do Brasil Império, porque outro palácio para o Brasil monárquico? E as funções científicas do Museu Nacional, notáveis por seu trabalho de tantos anos no campo da antropologia, vão sofrer remoção para onde?
E quem terá concebido essa ideia absolutamente idiota? Não o próprio Bolsonaro, que, em matéria de “ideias”, prefere confinar-se a armas de fogo, motocicletas e jet skis, além, naturalmente, da ideia fixa da reeleição. Talvez alguém da área da cultura, embora essa área nada tenha de mera presença na mídia depois da breve aventura da namoradinha Regina Duarte e esteja escondida… em que ministério mesmo?
Não, não veio daí o projeto e quem mais está empenhado nele é o ainda Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Como? O ainda Ministro das Relações Exteriores? (Desculpem, mas um ato falho me fazia substituir “Exteriores” por “Anteriores”, mas deletei a tempo, embora reconhecendo que o ministro é muito mais de coisas anteriores, como a monarquia e o Trump, que exteriores, como Biden e a China, maior parceira comercial do Brasil e fornecedora do insumo farmacêutico ativo que alimenta 80% das vacinas já aplicadas pelo SUS.
Pois o inacreditável Araújo é que está tocando o projeto do tal “Palácio Imperial” e trabalhando para conseguir os financiamentos internacionais necessários.
Aqui surge outra pergunta: que objetivos o Araújo teria em mente com essa ideia que absorve todas as suas atenções e energia?
Ele é um homem de propósitos de grande envergadura, como demonstrou logo no início do governo Bolsonaro, ao propor que o Brasil passasse a pensar em termos “espirituais”, filosóficos, e não em termos grosseiramente materiais, de ganhos e perdas, em seu comércio exterior. Por que conferir tanta importância – dava ele a entender – ao comércio com a China, um país de ideais tão distantes dos valores da tradição ocidental e cristã do Brasil?
No fundo, Araújo pensava em termos de uma nova guerra fria: era preciso conter a China, de governo ateu e povo não-cristão, antes que a China se tornasse o maior PIB do planeta, superior ao dos Estados Unidos, e a partir daí passasse a dominar ideologicamente países como o Brasil. Se dependesse dele, o Brasil se protegeria exclusivamente e obedientemente nos braços poderosos, ocidentais e cristãos do Trump.
Só que não adiantou o Bolsonaro torcer tão despudoradamente pela reeleição do Trump. Biden derrotou Trump, derrotou suas tentativas de anular o resultado da eleição e tomou posse com uma agenda de desenvolvimento sustentável e reforma social que lembra os dias de Franklin Roosevelt e seu New Deal.
Longe de Biden e da China, isolado no gueto ideológico que ajudou Bolsonaro a montar, Araújo surge agora com esse “Palácio Imperial” que só pode ser um projeto messiânico: assim que possível reinstalar a monarquia no Brasil.
Bolsonaro acreditará que a monarquia de Ernesto Araújo vai fazer dele o fundador de uma nova dinastia ou, dominado por sua paranoia, vai suspeitar da dinastia dos Orleans e Bragança acumpliciada com Araújo?
Quanto aos que estamos fora desses delírios, cabe uma última constatação: se derrapar de volta a 1889, o ano final da monarquia, o Brasil vai ficar bem perto de 1888, o ano em que a Lei da Abolição, proclamou o fim formal, mas não realizou o fim real da escravidão.
(*) José Augusto Ribeiro – Jornalista e escritor. Publicou a trilogia A era Vargas (2001); De Tiradentes a Tancredo, uma história das Constituições do Brasil (1987); Nossos Direitos na Nova Constituição (1988); e Curitiba, a Revolução Ecológica (1993). Em 1979, realizou, com Neila Tavares, o curta-metragem Agosto 24, sobre a morte do presidente Vargas.