Médico sanitarista e ex-secretário de C&T do governo democrático-popular diz que causas vão da péssima organização urbana e ausência de planejamento até despreparo dos governantes
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Reinaldo Guimarães, médico sanitarista, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e ex-secretário de Ciência e Tecnologia do governo democrático-popular, analisa o colapso da Saúde em Manaus e afirma que se trata do tipo da coisa que nunca acontece por uma única causa ou um só determinante. Ele destaca quatro fatores que levaram à tragédia sanitária da capital do Amazonas.
“Os desastres complexos têm determinações complexas. No caso de Manaus, e eu estenderia até para o Estado do Amazonas, existe uma série de fatores que converge para essa tragédia. O primeiro deles é que a própria organização urbana da cidade de Manaus é de uma precariedade enorme, com palafitas, grandes favelas horizontais nas quais há uma aglomeração imensa. Esse, digamos, é o pano de fundo que determina não só esta crise atual como outras crises sanitárias”, afirma.
O segundo fator, na opinião dele, é o fato de o Estado do Amazonas ter sido a unidade da Federação que menos recebeu recursos financeiros federais, em 2020, per capita. “Portanto, ponderado pela população. Vi isso numa estatística há dois dias na TV. Isso também é um elemento propiciador de crises sanitárias, principalmente, se, desses recursos, dos repasses federais para o Estado do Amazonas, não tenham havido alocações importantes para o setor de Saúde. Não sei se houve ou não, mas, certamente, se há carência de repasses federais, posso supor que ficou faltando dinheiro para a Saúde também”, observa.
Ele aponta o alinhamento do governo do Amazonas com o governo federal como terceiro fator. “O governo do Amazonas agradece, profundamente, o presidente Jair Bolsonaro e o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, mesmo tendo sido o estado que menos recebeu recursos federais e isso me parece uma contradição importante”.
O quarto fator, na avaliação de Guimarães, é o sistema de saúde amazonense e na cidade de Manaus ter precariedades crônicas, profundas e evidentes em termos de leitos para tratamento intensivo, a própria crise da falta de oxigênio, tudo isso sugere a existência de um sistema de saúde precário. “O próprio sistema de saúde pouco organizado revela uma falta de planejamento. Manaus teve, há 6 meses, outra crise que não impactou do ponto de vista do oxigênio, mas morreu muita gente”, analisa.
“As fotos das covas sendo cavadas nos cemitérios de Manaus se tornaram o assunto do mundo inteiro. Esse conjunto de fatores, na minha opinião, é o que fez com que chegássemos a este ponto. Evidentemente que, quando se chega a isso, a expectativa é a de que haja uma reação positiva e à altura das autoridades governamentais: se não as estaduais, as federais. O que é espantoso é o general Pazuello ter liderado uma comitiva para Manaus, na véspera da crise do oxigênio, não para tratar desse assunto, que era crítico, mas para fazer a propaganda da hidroxicloroquina e de outros supostos, equivocadamente, tratamentos precoces para a Covid-19”, declara o médico sanitarista.
Na avaliação dele, essa atitude do ministro da Saúde é inimaginável. “Trata-se de uma coisa vergonhosa, o que mostra, evidentemente, que não é somente o Estado do Amazonas que tem essa desorganização. Isso mostra que há elementos de desorganização importantes no próprio Ministério da Saúde. De uma maneira sintética, é isso que acho que vem acontecendo, nos últimos 10 dias, em Manaus. A crise já é anterior. O que agravou foi essa crise específica de oxigênio para ser usado por pacientes com insuficiência respiratória”.
Venezuela e oposição – No entendimento de Reinaldo Guimarães, é muito positivo que se o Ministério da Saúde não se organiza, se a organização local do sistema de saúde também deixa a desejar, que outros países e outras unidades da Federação do Brasil se mobilizem.
Ele vê a transferência de pacientes com Covid-19 de Manaus para outros estados como um remendo, mas que não deixa de ser uma tentativa de salvar vidas, uma vez que a logística para chegar oxigênio em grande quantidade em Manaus não é fácil, embora, digamos assim, essa não seja a forma ideal para se tratar desse assunto.
“Isso porque pacientes graves que tem de enfrentar uma viagem de avião, local em que a pressurização é algo negativo até para pessoas saudáveis, imagine para pacientes com insuficiência respiratória. Mas, de qualquer maneira, foi uma mobilização de outras unidades da Federação e, curiosamente, a maior parte dos estados que ofereceu UTI e tratamento é governada pela oposição. Ou seja, a maior parte dos estados que ofereceu ajuda não é governada por bolsonarista”, ressalta.
Ele observa que o Distrito Federal foi a única exceção de governo local bolsonarista que aceitou receber pacientes de Manaus. “Naturalmente, soma-se a isso a generosa oferta do governo Nicolás Maduro, da Venezuela, o que é um tapa com luva de pelica nessa atitude beligerante que o governo Bolsonaro, particularmente por intermédio do seu ministro das Relações Exteriores, tem com o regime venezuelano, de interferência nos negócios internos, de ataque à representação diplomática da Venezuela, de reconhecimento de um governo ilegal de Guaidó, um sujeito que ninguém mais ouve falar”.
Programa Mais Médicos – A crise no Amazonas reflete também a ausência do Programa Mais Médicos. A Venezuela também ofereceu 107 médicos para ajudar a superar a crise da pandemia em Manaus. Se o Programa Mais Médicos tivesse em funcionamento, talvez a falta de médicos não seria mais um item da crise sanitária e da Saúde.
“O Amazonas foi um dos estados que mais se beneficiaram do Mais Médicos, um programa que teve um papel muito importante em cobrir bolsões nos quais a estratégia da saúde da família não estava chegando a contento. E ele fez isso de uma maneira admirável durante o período em que funcionou”, afirma o médico sanitarista.
Ele ressalta que no Estado do Amazonas, se não em Manaus, havia em outros municípios, situações desse tipo em que a estratégia de saúde da família não chegava. Além disso, há, na região, muitas comunidades indígenas em número muito importante, locais em que o Mais Médicos tinha impactos positivos enormes.
“Há várias pesquisas feitas que demonstram isso. De modo que o fim do Mais Médicos, foi proposto por Jair Bolsonaro e abraçado o pelo então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. É preciso lembrar disso porque o ministro Mandetta saiu do governo como um herói, mas é cheio de problemas. Ele foi um dos que apoiaram o fim do Mais Médicos. Ele não fala nada sobre isso, mas é preciso lembrar.
Desorganização e despreparo – Para Guimarães, a desorganização do sistema de saúde não é proposital, embora exista o posicionamento negacionista do Presidente da República, que não acredita na ciência e acredita em tudo o que a ciência não sanciona. “Não acredito que o ministro da Saúde tenha ido lá no Amazonas fazer a propaganda da cloroquina de propósito para não tratar do problema mais grave que era a falta de oxigênio e muita gente morrendo. Ou seja, ele foi lá trata de aspectos ligados a casos leves, ou seja, o suposto tratamento precoce, quando o nó do problema não eram pacientes casos leves, eram pacientes que estavam morrendo. Isso, para mim, não é maldade do governo. Isso é despreparo completo do governo federal no enfrentamento da pandemia”, finaliza.