“Na Colônia, como nos I e II Impérios, o critério para preenchimento dos cargos de Ministros e Secretários dos Negócios da Guerra e da Marinha era exclusivamente o político. Os ministros se substituíam nas pastas, de acordo com as subidas ou descidas do poder, dos partidos políticos existentes. De modo nenhum se levava em conta os conhecimentos especializados ou o critério técnico. Em geral ocupavam as pastas militares, civis, senadores ou deputados, chamando-se raramente a ocupa-las militares” (Coronel Mario Hermes da Fonseca, Prefácio de “Ministros da Guerra no Brasil”, de Theodorico Lopes e Gentil Torres, Rio de Janeiro, 1949, 3ª edição).
A Independência do Brasil quebrou a intermediação lusitana para imposição dos interesses coloniais ingleses em nossa Pátria. Lembremos que o Império Inglês se consolidou colonizador internacional com o Tratado de Viena, em 1815, e nossa independência se deu em 1822. As relações de classe e de famílias, até de pessoas não se alteraram, e os interesses mercantis e financeiros ingleses se acentuaram. A tudo as Forças Armadas (FA) estavam afastadas. E ainda mais, interessava seu distanciamento como se percebe com a criação, em 1831, da Guarda Nacional.
Em princípio a Guarda Nacional, organização permanente conforme a Lei, era auxiliar ao Exército. Mas “sua subordinação às câmaras municipais, aos juízes de paz, às listas eleitorais, denuncia características nítidas de classe, uma vez que tais elementos eram representantes diretos dos senhores de terras”. “A criação da Guarda Nacional representava apenas uma parte da política da classe dominante, a outra parte estava no papel secundário conferido ao Exército” (N. Werneck Sodré, A História Militar do Brasil, Civilização Brasileira, RJ, 1979, 3ª edição).
Não repetiremos o que excelentes livros já o fizeram, com rigor histórico, análises e reflexões, sobre a história militar do Brasil. Vamos pinçar alguns episódios para entender a participação política e as opções das FA em momentos importantes.
“Não podemos ser mais inteligentes que nosso meio sem ser prejudiciais aos que queríamos servir e a nós mesmos. Valemos quanto vale a realidade que nos circunda”, escreveu Raúl Scalabrini Ortiz, na consistente análise da influência inglesa, no “Política Britânica no Rio da Prata” (tradução de Renato Tapado para Editora Insular, Florianópolis, 2014).
As denominadas questões do Prata são excelente exemplo da pressão e da pedagogia coloniais influenciando nossas elites dirigentes, moldando a compreensão das classes brasileiras e, consequentemente, influenciando as Forças Armadas.
A Questão Platina, embates bélicos e diplomáticos brasileiros com governantes e povos argentinos, paraguaios e uruguaios, tomou-nos a atenção por mais de meio século (1816-1870), na Colônia e no Império. Sugou recursos humanos, econômicos, militares e naturais e deixou substantiva dívida com bancos ingleses e nossa submissão nacional política e administrativa. Gustavo Barroso (1888-1959), historiador e escritor, em sete volumes reeditados por Getúlio M. Costa, em 1939 (Guerra do Lopez, do Flores, do Rosas, de Artigas, do Vidéo, Tamandaré e Osório), descreveu episódios e contos sobre aqueles eventos.
Na obra de Genserico de Vasconcelos (Cap. G. de Vasconcelos, História Militar do Brasil, Bedeschi, RJ, 1942, 2 volumes, 3ª edição), lemos nos Apêndices as correspondências nas quais o Ministro Plenipotenciário inglês James Hudson ameaça brasileiros e argentinos com o acordo ditado pelo Governo Britânico. E, ainda mais impressionante, a resposta do Governo do Império Brasileiro ao contratar, para as campanhas de 1851/1852, tropas alemãs. Ao que se opôs o Patrono Luís Alves de Lima e Silva (1803-1888), Duque de Caxias.
A libertação dos escravos, sob a capa humanista, foi um ato midiático e de crueldade das elites dirigentes, antecipando os sociopatas neoliberais que tomariam o poder na República.
Como lançar ao desabrigo pessoas inteiramente desprovidas, sem ter mínimos recursos para sobreviver? Uma verdadeira uberização que nos seria imposta pelos governos neoliberais, após a Constituição de 1988, sem mesmo a esmola da contraprestação do serviço.
E ainda foram buscar os recibos, as notas de importação e da compra dos escravos para pedir indenização ao Estado!
Difícil, realmente difícil proteger essa gente. Para isso uma história, uma interpretação, toda uma pedagogia vinha sendo construída desde a chegada dos educadores privados no primórdio da colonização. O Estado jamais compreendera que lhe cabia formar o povo para desenvolvimento de todos, para o progresso da Pátria que lhes dava identidade, para construção da cidadania.
Como exigir de um só conjunto de profissionais o que todo restante do País dispensava? O entendimento da ação política e a internalização dos ideais nacionalistas.
Os militares são cidadãos brasileiros com os deveres e direitos de todos. Há, isto sim, condições específicas como profissionais, que se destacam de outras categorias, pelo enfrentamento bélico. Mas nem mesmo se pode, com as tecnologias atuais, dizer que os militares têm a exclusividade da ação em defesa da Pátria. Profissionais atuando nas áreas das tecnologias da informação, nuclear e na diplomacia também pertencem ao mesmo segmento para defesa da Soberania Brasileira.
Ao proclamar a República, o Brasil teve uma oportunidade de se tornar um país unitário, com o planejamento e o controle centralizados e as ações executivas adequadas às realidades locais. O modelo vindo do Impérios era do poder repartido pelas províncias e o poder central atuando como um poder moderador. Como se observa, havia a falta da integração que levaria o País às enormes desigualdades regionais, e com isto acentuando as desigualdades sociais.
Porém já havia, na Constituição do Rio Grande do Sul de 1891, denominada “castilhista”, os elementos institucionais para a necessária reforma do Estado, uma nova estrutura distinta daquela que repetia, na essência, a trazida por Tomé de Souza (1549).
E os marechais Manuel Deodoro da Fonseca (1827-1892) e Floriano Vieira Peixoto (1839-1895) tinham conhecimento do positivismo gaúcho. Boa parte das FA debatia e aderia a versões do pensamento de Augusto Comte que aqui chegavam.
Mas os interesses egoísticos das elites proprietárias rurais, vinculadas ao modelo econômico agrário exportador, temerosas de serem atropeladas pelo desenvolvimento industrial e tecnologias já aplicadas na Inglaterra e nos Estados Unidos da América (EUA), vocalizaram os interesses coloniais britânicos e impediram os militares, proclamadores da República, de construírem o novo Brasil.
A consequência foi a paralisia econômica, tecnológica e cultural da I República, e as consequentes reações com movimentos culturais (Arte Moderna em 1922), revoltas (Vacina – 1904 e Chibata – 1910), além de levantes e revoluções.
Apenas para confirmar a insegurança e a inquietação que os governos da elite agrária provocaram no Brasil, desde a Revolta da Armada, em 1893, tivemos: a Revolução Federalista no Rio Grande dos Sul, em 1893; o Episódio de Canudos, entre 1896 e 1897; a Guerra do Contestado, entre 1912 e 1916; a Revolta de Juazeiro, em 1914; o Levante no Forte de Copacabana, em 1922; a Revolta Paulista de 1924; a Coluna Prestes, entre 1925 e 1927; culminando com a Revolução de 1930.
Embora movimentos políticos e civis, a Revolução de Trinta e o Estado Novo só conseguiram êxito pelo apoio militar. E este não era unânime. Verificamos uma divisão entre o que denominaremos militares “sociodesenvolvimentistas” e militares “financeirodependentes”.
Embora os interesses coloniais sobre o Brasil tenham se alterado a partir da Revolução de 1930, estes dois grupamentos, com maior ou menor consciência e atuação, influíram nos rumos de nossa Pátria nestes últimos 90 anos.
Cabe recordar um episódio dos mais significativos da História das Américas: as ações de Simón Bolívar e George Washington que conduziram um país ao subdesenvolvimento e dependência e outro à poderosa nação imperialista.
Washington adotou a orientação de Alexandre Hamilton (1757-1804). Esta poderia ser denominada, hoje, industrial desenvolvimentista ou das “finanças funcionais”. Os EUA desconheceram os ajustes fiscais e austeridades orçamentárias
Bolívar seguiu seu vice-presidente Francisco de Paula Santander (1792-1840), influenciado pelo político inglês George Canning (1770-1827), defensor do monetarismo, das “finanças saudáveis”, o mesmo que procurou dissuadir Dom João VI de criar o Banco do Brasil.
Santander considerava fundamental eliminar o déficit público, manter o superávit fiscal mesmo a custo de permanente imobilismo e da recessão. Endividou a Grã Colômbia em quatro milhões de libras esterlinas, tomadas aos banqueiros B.A. Gold Schmidt & Coo. para zerar o déficit orçamentário. Um verdadeiro serviçal da banca, avant la lettre. O resultado está aí: estados narcotraficantes, guerrilhas, fomes e instabilidades.
Em 1945, a conjuntura internacional pendeu para as elites primário exportadoras brasileiras que, com domínio das mídias e apoio explícito dos EUA, mudam o rumo brasileiro. Por cerca de 20 anos conheceremos a disputa, cabeça a cabeça, que o desenvolvimentismo trabalhista travou com aquelas elites. Em 1964, estas elites e seu aliado estadunidense assumem o governo, este com seu representante no controle da economia brasileira, e com a justificativa da modernização passam a restringir a ação empresarial genuinamente nacional e dificultar a aplicação da nossa engenharia.
O período de 21 anos, conhecido como dos Governos Militares ou da Revolução de 1964, mostrou mais do que a divisão entre os “sociodesenvolvimentistas” e os “financeirodependentes”, mostrou no Brasil um embate entre o nacionalismo e o globalismo.
Vamos nos deter brevemente nas suas três fases. O governo sob orientação de Roberto Campos e dos interesses estadunidenses lembra em parte o que está ocorrendo sob Paulo Guedes: falência, fechamento ou extinção de empresas produtivas e de engenharia brasileiras, direcionamento dos recursos públicos e privados para o setor financeiro e, consequentemente, desemprego, miséria e insegurança.
A segunda fase tem início com Costa e Silva, trazendo Delfim Neto; cai a taxa de juros e “a política econômica do regime experimenta uma importante reorientação em relação ao governo Castello Branco, procedendo-se a uma tentativa de síntese da perspectiva heterodoxa que então tornou-se dominante” (José Pedro Macarini, A política econômica do Governo Costa e Silva 1967-1969, Revista de Economia Contemporânea, UFRJ, set/dez 2006). Até Ernesto Geisel, que finda esta fase, o Brasil conheceu extraordinário desenvolvimento não só no campo econômico e tecnológico quanto no social e cultural.
A última fase, com Mario Henrique Simonsen, tem início a decadência, a invasão neoliberal e o desmonte do Estado e da economia nacional, dos direitos sociais e da cultura que perdura até hoje. É também a fase que lembra a I República e o Brasil recém independente buscando afastar o Exército da ação política.
Revisando as notícias e as análises do período dos Governos Militares fica-se com a impressão que a Primeira Fase foi suave e pouco agressiva. Também as oposições pareciam mais políticas e parlamentares.
Já a Segunda Fase ter-se-ia desenvolvido em guerra civil, com violenta repressão e tortura de um lado e guerrilhas de outro. A recessão, falências e desempregos no Governo Castello Branco somem, como também somem, na Segunda Fase, a criação da Central de Medicamentos, da Funarte, da Previdência Rural, da Embrapa, do INCRA, dos índices de crescimentos que a China só alcançará no século XXI, e inúmeros feitos econômicos e tecnológicos como o Proálcool, a Nuclebrás, a Cobra, a Telebrás e obras de grande porte como a Hidrelétrica de Itaipu. Também o Brasil passa a exportar tecnologia e serviços, atua com intensidade na África onde é o primeiro Estado a reconhecer a independência de Angola.
A literatura parece ter somente encontrado a disputa entre a “linha dura” e a “abertura política”. E mesmo passada com folga uma geração, os adeptos dos governos militares veem os opositores com esquerdistas e “comunistas (?)” e para estes os militares são opressores e torturadores. A anistia não foi eficaz.
Mas foi com a “redemocratização”, com o processo parlamentar multipartidário, que as portas brasileiras se abriram para o neoliberalismo, para o domínio dos governos pelas finanças, para as privatizações, a alienação de bens intelectuais (tecnologia aeroespacial, de informática, das energias) e naturais que não se podem repor (petróleo e minerais). Ao nacionalismo colocou-se o globalismo, à soberania a submissão.
Parodiando Noel Rosa (Positivismo, com Orestes Barbosa): a soberania vem por princípio, a cidadania por base, a democracia é que deve vir por fim, desprezaste esta lei geopolítica e trouxeste o Estado Mínimo para o Brasil.