Professor da USP, que morreu no dia 1º, foi um dos grandes intérpretes da política brasileira e latino-americana
No dia 1º de agosto, domingo, a vida intelectual e política brasileira perdeu Francisco Correa Weffort (1937-2021), Professor Emérito do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Ministro da Cultura durante o governo Fernando Henrique Cardoso, Weffort foi também um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), chegando a ser secretário-geral do partido.
Weffort se destacou por seus estudos sobre o populismo e a democracia. Durante a ditadura militar, suas pesquisas buscaram entender por que o golpe e o regime de exceção conseguiram interromper a experiência democrática brasileira iniciada em 1945, após a queda de Getúlio Vargas e o fim do Estado Novo.
“Populismo é a categoria que Weffort usou para explicar as fragilidades do regime democrático, que não havia sido capaz de organizar uma estrutura política forte, resistente ao golpe”, comenta Daniela Mussi, professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). De 2016 a 2020, Daniela atuou como pesquisadora de pós-doutorado na USP, em um projeto sobre o Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec), fundado por Weffort em 1976. Durante sua estada na USP, Daniela teve oportunidade de se aprofundar na obra do professor.
De acordo com Daniela, o tema do populismo já aparece em Weffort ainda nos anos 1960, em escritos anteriores ao golpe, e entra nos anos 1970, em uma agenda de pesquisa bastante associada à cultura intelectual da USP que se exilara no Chile, como é o caso de Fernando Henrique Cardoso. Disso decorre a aproximação da obra de Weffort com as discussões sobre dependência de FHC. Foi durante o exílio no Chile que Weffort e Fernando Henrique, ao lado de outros exilados como José Serra e Maria da Conceição Tavares, se aprofundaram na compreensão da realidade política, econômica e social da América Latina.
“Podemos dizer que, na elaboração de Weffort, o populismo é a face política da dependência. É o arranjo político de uma situação democrática de dependência”, afirma Daniela. “Weffort pensa essa forma política que os Estados da América Latina adquirem na tentativa de experimentar a democracia, nunca conseguindo, de fato, levar a termo a construção de partidos fortes, com interesses próprios, tradição e visão estratégica. Os grupos políticos sempre mantêm algum grau de dependência em relação à estrutura estatal que os antecede.”
Aos poucos, conta Daniela, o populismo foi ganhando novos contornos no pensamento de Weffort e sendo identificado em outros campos, como é o caso do sindicalismo. O professor analisou como a estrutura sindical guardava a herança do Estado Novo e carecia de autonomia. “Aqueles arranjos jurídicos que haviam forjado os sindicatos nos anos do Estado Novo acabam sobrevivendo ao tempo e sendo reproduzidos na dinâmica sindical, inclusive pelas oposições”, explica a pesquisadora, citando como exemplo o complexo debate, ainda hoje inconcluso, sobre o imposto sindical.
É nesse contexto, em 1978, que Weffort publica a coletânea O Populismo na Política Brasileira, um de seus livros mais conhecidos, que reúne textos escritos entre 1963 e a data da publicação e condensa sua produção sobre o tema. A partir dos anos 1980, o professor se debruçaria sobre o problema da democracia, tentando responder, de acordo com Daniela, a uma pergunta: “Qual é a democracia que o Brasil pode alcançar e construir nesse novo momento da sua experiência?”.
Após décadas, ambos os temas – democracia e populismo, agora pensado também em seu viés direitista – continuariam na perspectiva de Weffort, como atesta sua participação, ao lado do também professor da FFLCH José Álvaro Moisés, do programa Desafios, do Jornal da USP, em maio passado.
“A principal contribuição de Weffort foi produzir uma reflexão original sobre a política na democracia brasileira e, para isso, o populismo foi só uma espécie de impulso”, reflete Daniela. “O conceito de populismo nunca foi único, mudou ao longo do tempo, à medida que a reflexão e os problemas analisados se transformavam. Não é uma categoria que possui rigidez ou um caráter abstrato. O que está em jogo é tomar conceitos como ferramentas para pensar a construção democrática no Brasil. E, por isso, são ideias que mantêm o vigor e a atualidade. Porque, ainda hoje, pensar a experiência democrática no Brasil e suas dificuldades se revela atual”, pontua a pesquisadora.
Professores da USP destacam legado de Francisco Weffort
Docentes do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP lamentaram a morte de Francisco Weffort, destacando contribuições intelectuais e a importância do professor para a institucionalização da ciência política no País.
“Weffort foi muito importante para a área de política da USP, tendo feito parte, ainda na época das cátedras, da Cadeira de Política e, durante a ditadura, tendo sido fundamental para a manutenção da pesquisa e do ensino do que se tornou o Departamento de Ciência Política”, comenta o professor Bernardo Ricupero. “Seus estudos sobre populismo tiveram grande influência, contribuindo para a criação do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec), que se destacou pela reflexão a respeito dos movimentos sociais que emergiam no final da ditadura. Sua obra teve impacto político, tendo influenciado, nos seus primeiros anos, o Partido dos Trabalhadores (PT), do qual foi secretário-geral. Foi importante para que a esquerda, sob o impacto do autoritarismo, valorizasse a democracia, tema sobre o qual escreveu. Depois de ser ministro da Cultura de Fernando Henrique Cardoso, estudou ainda o pensamento político brasileiro. Em resumo, teve uma trajetória muito rica, em que a reflexão e a atuação política se mesclam.”
Já o professor Rogério Arantes relembra o contato que teve com Weffort ainda como estudante. “Morreu Francisco Weffort, um dos fundadores da moderna ciência política brasileira e um dos construtores do Departamento de Ciência Política da USP”, escreveu o docente em texto publicado também nas redes sociais. “Autor de várias obras importantes, ensinou toda uma geração a pensar a democracia e a tê-la como valor universal. Tenho várias lembranças dele, a mais especial é de ter sido seu aluno no primeiro ano da graduação. Weffort tinha um jeito encantador de expor as ideias políticas, que mesclava rigor e paixão, tudo que um aluno precisa quando está começando sua formação. Tive esse privilégio e devo a professores como ele o fato de estar aqui hoje, mirando seu exemplo e tentando fazer o melhor para a geração pela qual somos responsáveis.”
“Francisco Weffort era uma pessoa de uma generosidade e abertura intelectual incomparáveis”, recorda o professor Fernando Limongi. “Com Leôncio Martins Rodrigues, que também faleceu este ano, Weffort foi um dos responsáveis por construir o Departamento de Ciência Política da USP, do qual nunca se afastou, mesmo durante os anos mais repressivos da ditadura. Fui seu aluno e, até hoje, quase 40 anos depois, ainda me recordo das suas aulas, da sua clareza, de seu pensamento penetrante e inquietante. A meu juízo, sua contribuição intelectual mais duradoura e marcante foi o reconhecimento da limitação do marxismo para pensar a democracia política, expressa em seu livro Qual Democracia. O livro foi publicado em 1992, mas essa dimensão já estava presente em seu pensamento e prática política fazia algum tempo. Weffort, além disso, foi secretário-geral do PT por um bom tempo, em boa parte de seus anos de formação, contribuindo decisivamente para a adesão do partido ao jogo eleitoral democrático. Seu legado, portanto, é incomensurável. Pessoalmente, como muitos dos que se formaram sob sua influência, sinto-me órfão. Mais um mestre, como Leôncio Martins Rodrigues, que se foi.”
O professor André Singer, por sua vez, ressalta o valor que as análises de Weffort representaram para a identificação das classes sociais na política brasileira. “Weffort teve uma importância decisiva para a ciência política brasileira de dois pontos de vista”, explica. “Do ponto de vista institucional, durante o período mais difícil da ditadura militar, que começou após o AI-5, com pesquisadores de diferentes partes do Brasil, fez um esforço muito bem-sucedido no sentido da institucionalização da disciplina em nosso País. Em boa medida, nós devemos a atual estrutura institucional que a disciplina tem a lideranças como a do professor Weffort. Do ponto de vista intelectual, sua contribuição foi a de, a partir de uma análise muito original do populismo no Brasil, identificar o papel das classes sociais na política brasileira. Além disso, o professor Weffort articulou os problemas das classes sociais ao problema da construção da democracia no Brasil. Por fim, fez parte de uma tradição a que deu um desenvolvimento grande, a de pensar o socialismo democrático no Brasil”, conclui Singer.
Do Jornal da USP